Sororidade em Pauta

Vale a pena olhar de novo: sobre a obra Alice, em Sevilha

“É que quando eu cheguei por aqui, eu nada entendi (…) É que narciso acha feio o que não é espelho” – Sampa, Caetano Veloso   Acho interessante olhar uma vez para as coisas e depois olhar de novo. É incrível como sempre se nota […]

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“É que quando eu cheguei por aqui, eu nada entendi

(…)

É que narciso acha feio o que não é espelho”

– Sampa, Caetano Veloso

Acho interessante olhar uma vez para as coisas e depois olhar de novo. É incrível como sempre se nota algo diferente. Em tempos de efemeridade em relação a tudo, em que olhamos tantas coisas, que já não conseguimos memorizar e apreender o que está além das imagens que se apresentam, em que não conseguimos sequer refletir sobre essa multiplicidade de informações, é bom poder reservar um espaço e um tempo para uma revisita.

Passando por um espaço cultural em Sevilha, me surpreendeu ver uma instalação onde em uma grande parede, dotada de duas janelas, se punham para fora um rosto e um braço. Achei bonita a imagem e empolgada por recém ter chegado à cidade, tratei logo de tirar uma foto – uma ótima forma de não ver bem as coisas – e esqueci o assunto. Sequer me dei ao trabalho de ler sobre a obra de arte.

Passado um mês, pensando no controle dos corpos e nas práticas do patriarcado para manter a mulher nos espaços privados, resolvi sair de casa para praticar a escrita a partir de um lugar público. Voltei, sem pensar, embora meu inconsciente seja certamente feminista, àquele lugar onde está a instalação, sem pensar na obra de arte, mas apenas com a intenção de escrever tomando sol em um lugar bonito.

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Ao chegar no Centro Andaluz de Arte Contemporânea, o braço e rosto de mulher – da outra vez, não havia percebido que era uma mulher – saindo pela janela de uma casa pequena demais, me emocionaram e imediatamente me levaram de volta à infância, à um livro escrito por uma mulher, Fernanda Lopes de Almeida, publicado em 1975, no meio da ditadura militar no Brasil[1].

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É a história de uma menina, uma fada chamada Clara Luz, que se negando a obedecer receitas contidas no livro de mágicas, rompeu a repressão à sua criatividade, colocou muito “fermento de relâmpago” num bolo, que cresceu, cresceu, saiu pelas janelas da casa, ultrapassou os limites permitidos – do livro de mágicas, da casa e do céu – e transbordou, fazendo chover colorido na Terra.

Fiquei tão impressionada com essa nova mirada para o mesmo lugar que fui ler o que estava escrito sobre a obra. Outra surpresa. A instalação é de autoria de uma mulher Cristina Lucas[2], cuja produção é centrada na crítica de gênero e das estruturas culturais e de poder.

O nome da obra é Alicia, inspirada na obra de Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas[3], particularmente na cena em que Alice, atraída pela curiosidade, come um bolo onde está escrito “coma-me” e cresce desmedidamente, ficando maior que a casa.

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Cristina Lucas pretendeu fazer alusão à reclusão física e psíquica da mulher, presa no espaço privado. Naquele dia, eu saí de casa, fui até aquele espaço público para, fazer meu solitário, silencioso e íntimo protesto contra o confinamento da mulher.

Passadas algumas horas, já não estava só, éramos quatro, além de mim, Cristina, Alice e Clara Luz, que não nos comportamos ao restrito espaço onde querem nos encerrar.

Comportamos, comporte-se, comportamento. Com certeza, nós mulheres, já ouvimos inúmeras vezes essas palavras sendo dirigidas a nós ou sobre nós. Tanto as mais comportadas, ou não teriam se tornado quem são, quanto as não comportadas, as mal comportadas.  

Comportar é proceder socialmente, conduzir-se adequadamente. Como verbo significa conter ou poder conter em si, encerrar. Esses são os significados mais expressivos e todos me remetem à mulher e ao controle a que estamos submetidas. O controle dos nossos corpos, dos nossos gestos, das nossas emoções e, principalmente, da nossa voz, que não pode ser ouvida se estamos “comportadas” no espaço privado, ou que a sociedade se nega a ouvir quando conseguimos romper a barreira do privado e tentamos falar nos espaços públicos.

Grada Kilomba, artista, psicóloga e teórica – outra mulher mal comportada-, em seu artigo A Máscara, fala das políticas de silenciamento do colonialismo, a partir da máscara de metal colocada no interior da boca do sujeito negro, com a finalidade de impor uma postura de mudez e de medo. A autora faz uma análise do ponto de vista psicanalítico sobre a necessidade de calar o outro, partindo do seu lugar de mulher negra. O foco da obra é o sujeito negro, mas obviamente, nossa condição comum de subalternidade, permite uma analogia, em relação a falar e ser ouvido: 

“Ouvir é, nesse sentido, o ato de autorização em direção à/ao falante. Alguém pode falar (somente) quando sua voz é ouvida. Nessa dialética, aqueles(as) que são ouvidos(as) são também aqueles (as) que “pertencem”. E aqueles(as) que não são ouvidos são aqueles(as) que “não pertencem”[4].

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Todas nós, mulheres, carregamos a máscara simbólica que nos controla a fala, nos calando ou não nos ouvindo, a fim de que nos comportemos, e nossa fala fique limitada ao que é adequado.

Marina Colasanti, escritora ítalo-brasileira escreveu “A moça tecelã”[5], um conto lúdico, onde uma moça que sonhava e tecia, construiu uma vida “comportada”, a vida que devia sonhar, para descobrir que isso era pouco, pois estava tecendo os desejos de um homem, com o qual acreditou que escaparia da solidão, mas não estava feliz. Com o mesmo tear que teceu o homem, o castelo e tudo que ali estava, e sem sair da torre onde estava encerrada, realizando atividade típica da mulher restrita ao espaço privado, junto ao seu tear, desteceu um a um: o castelo, os cavalos e o homem, e teceu uma nova manhã, ensolarada. Sem sair do privado, conquistou sua liberdade.

Carmem de Burgos foi uma jornalista espanhola, que começou a escrever no jornal El Globo no início do sec. XX, passando um ano depois, em 1903, a escrever, sob o pseudônimo de Colombine, no jornal Diário Universal. Assisti a um documentário sobre ela outro dia. Não a conhecia, mas o documentário abordava justamente isso. A importância dessa mulher na luta feminista e na invisibilização a que está condenada pelo fato de ser mulher.

No entanto, o que mais me chamou atenção foi a forma como lutou. Vivendo num mundo de homens e escrevendo em uma coluna no jornal, chamada “Lecturas para la mujer”, que aparentemente tratava de assuntos “de mulher” conseguiu fazer ser ouvida sua voz, se comunicar, tratar de temas como divórcio e voto feminino, questões do trabalho da mulher, e iniciar uma luta que estamos travando até hoje.

O que ficou mais divulgado sobre Carmem de Burgos foi seu romance com o escritor, Ramón Gómez de la Serna, 20 anos mais novo – que não foi condenado ao esquecimento -, e o fato de não terem sido casados. Forma muito comum de desqualificar uma mulher é fazer seu linchamento a partir do moralismo da religião e dos costumes, e Carmem tinha a Igreja como inimiga, já que promoveu um plebiscito a respeito do divórcio, em 1904, iniciando a discussão sobre o assunto na imprensa. Mesmo com habilidade para ultrapassar muitas barreiras, Carmem, definitivamente, não era “comportada”, não se conduzia adequadamente, não se podia conter.

Por esse controle do comportamento e pela nossa individualidade, acredito que cada mulher tem em si sua resistência e, todas nós temos nossos dispositivos para tal.  É preciso ver isso em relação às outras mulheres, sem ideias pré-concebidas, julgamentos e rótulos, olhando a mulher a partir de sua complexidade, formação e contexto, pois assim seremos capazes de, num segundo olhar, atento dessa vez, perceber as revoluções que cada uma de nós faz para que as coisas mudem.

O segundo olhar certamente muda as perspectivas e as expectativas. É um exercício de sororidade e generosidade. Buscar os pontos em comum, porque o ponto de partida de todas nós é o mesmo.

Há muito que aprender com os povos ancestrais sobre esse assunto e isso também tem relação com olhar uma segunda vez para as coisas que nos apresentam. Não aderir ao que primeiro nos trazem aos olhos, não aceitar que nada temos em comum com quem vive em uma cultura diversa. O Comitê Clandestino Revolucionário indígena-comandância geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional promoveu de 08 a 10 de março de 2018, no seu território, mais precisamente no Caracol de Morelia, o “Encuentro Internacional de Mujeres que luchan”[6]. Com o objetivo de compartilhar experiências onde se reuniram mais de 6.000 mulheres e, já na abertura as zapatistas sugeriram:

Talvez, quando o encontro tenha acabado, quando regressem aos seus mundos, aos seus tempos, às suas maneiras, alguém lhes pergunte se chegaram a algum acordo. Porque eram muitos pensamentos diferentes que chegaram nessas terras zapatistas. Talvez então vocês respondam que não. Ou talvez respondam que sim, que sim fizemos um acordo. E, talvez, quando lhes perguntem qual foi o acordo, vocês digam “nosso acordo é viver, e como para nós viver é lutar, pois combinamos lutar cada quem segundo seu jeito, seu lugar e seu tempo”[7].

É isso, cada uma do seu jeito, no seu lugar e a seu tempo, mas todas fazendo seus movimentos.

Pelo movimento dessas mulheres, da ficção ou não, que se faz chover colorido na Terra, se transborda pelas janelas, se denuncia quando não somos ouvidas, destece-se uma realidade de opressão e se luta por uma causa que parece impossível e, principalmente, é por este movimento que podemos construir uma rede de resistência e construção de algo novo.

E se o espaço da casa não comporta as mulheres que não se comportam, por estarem grandes demais, construiremos nós mesmas, novos espaços, agora públicos, pois não há chances de encolhermos. Basta um segundo olhar, mais atento, para ver que os cães continuam ladrando, mas a caravana passa, dia a dia, às vezes silenciosa, às vezes fazendo muito barulho.


[1] ALMEIDA, Fernanda L. A fada que tinha ideias, Editora Ática, 1976. Considerado como literatura infantil de resistência, esse livro conta a história de uma fada que não aceitava limitar suas mágicas às receitas contidas em um livro.  Clara Luz queria inventar suas próprias mágicas: “Quando alguém inventa alguma coisa, o mundo anda. Quando ninguém inventa nada, o mundo fica parado. Nunca reparou?”.
[2] Cristina Lucas, Alicia, 2009. Centro Andaluz de Arte Contemporáneo.
[3] CARROL, Lewis. Alice no país das maravilhas, tradução Rosaura Eichenberg, L & PM Editores, 2003.
[4] KILOMBA, Grada“A Máscara”. “The Mask” in: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição 2010, traduzido por Jessica Oliveira de Jesus
[5] COLASANTI, Marina. A moça tecelã, Editora Global, 2003.
[6] A convocatória pode ser acessada no endereço http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2018/01/19/convocatoria-ao-primeiro-encontro-internacional-politico-artistico-esportivo-e-cultural-de-mulheres-que-lutam/
[7] Michele Torinelli esteve no encontro e narrou sua experiência: http://vidaboa.redelivre.org.br/2018/03/25/mulheres-em-luta-e-por-alguns-dias-sem-medo-nosso-acordo-e-viver/
Alguns vídeos sobre o encontro: ?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> style="font-weight: 400;"> style="font-weight: 400;"> e ?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> style="font-weight: 400;">

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