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Por uma resistência consciente, afetiva e efetiva

Sobrevivemos a 2019 e estamos dispostas a enfrentar o que há por vir

Foto: Rovena Rosa/EBC
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“Há muita gente se fingindo de ovelha para lavar as mãos diante do que vive o Brasil. Mas há também gente angustiada perguntando o que fazer diante do que já não consegue deixar de ver. A estes, respondo que ninguém vai dar a resposta. Esta resposta terá que ser criada, coletivamente, por iniciativa dos que fazem a pergunta. Em cada profissão há o que fazer. Este é um momento em que precisamos fazer melhor o que sabemos fazer, mas também precisamos fazer bem o que não sabemos. Apenas o que sabemos já não é suficiente. O que somos já não é suficiente. Temos que ser melhores do que somos para enfrentar este tempo em que já não há tempo. E temos que ser juntos, fazendo laços e tecendo redes entre nós. Este é o desafio de 2020. O ano novo não está dado. 2020 só será novo se nossa resistência resgatar o presente das mãos dos déspotas. Esta é a única resolução possível diante do que vivemos e do que testemunhamos. Cada um de nós precisa se responsabilizar pelo horror do nosso tempo”.

– Eliane Brum, em “Os cúmplices”

Esse texto é uma tentativa de começar uma leitura, ainda que dolorida, sobre o que vivemos nesse recém passado 2019 e assim juntar os fragmentos desse ano que passou, traçando um paralelo entre a atual conjuntura e a nossa própria inaptidão em responder à convocação feita por Eliane Brum de não cumplicidade e enfrentamento coletivamente a esse estado de coisas que vivemos.

Desde o início este governo disse a que veio, confirmando sua promessa de campanha e promovendo, ao mesmo tempo, a defesa de pautas ultraconservadoras no âmbito dos costumes e culturais e a concretização de projetos econômicos alicerçados no novo neoliberalismo. A cada mês, a cada semana, a cada dia, uma fala, uma tentativa, uma materialização rumo ao desmantelamento das mínimas conquistas do Estado do Bem-Estar Social, com violações de direitos humanos, atingindo especialmente os mais vulneráveis. Esse discurso de violência simbólica, que se concretiza em violência física para grande parte da população, se utiliza da manipulação de sentimentos e promete o retorno a um passado mítico de paz e segurança.

Essa nostalgia por um passado que nunca existiu, que Bauman denomina “retrotopia”, permite “resgatar” formas de identidade inventadas, que podem ser de identidade nacional, de raça, classe, gênero, entre outros velhos preconceitos.

Com a reinvenção do discurso de ódio em tempos de pós-verdade, o que esta rearticulação discursiva nos mostrou foi que não era necessária uma mudança estrutural para que se pudesse colocar em prática novamente esse discurso. Pior do que isso, em tempos de pós-verdade, a utilização do desamparo humano e da contradição, que pode ser tomada em última escala no que Freud já apontou quando tratou das pulsões de amor e de ódio estruturantes dos sujeitos da modernidade, foi a armadilha perfeita: dominação social pela ilusão de desresponsabilizar o sujeito.

Para enfrentar essa ruptura histórica, urge compreender que esse novo modelo de governabilidade é produto da crise do próprio capitalismo neoliberal – que levou a desagregação dos laços sociais, demonização da política, potencialização da concorrência/rivalidade, construção de inimigos, desestruturação dos serviços públicos, etc. – e promete respondê-la com medidas que não interferem diretamente no projeto neoliberal. Ao contrário, visam esconder os reais problemas, criando inimigos imaginários, como os direitos humanos, a democracia representativa, a degradação moral, a depravação sexual, a diversidade, as minorias, etc. e no Brasil, mais especificamente: o PT e Lula.

Onde há dominação, há também resistência

Esse novo neoliberalismo, “ultra-autoritário”, não só se alimenta da crise (e gera crises para esse fim) também fabrica e persegue “culpados” pelos danos causados pela própria lógica neoliberal. Se, por um lado, o novo neoliberalismo surge como uma “resposta” populista, que manipula afetos produzidos na fronteira entre “nós, os insatisfeitos” e “eles, os causadores da insatisfação”, aos danos perversos gerados pelo neoliberalismo “clássico”, que proporcionou o esfacelamento das promessas do Estado do Bem-Estar Social continua a servir aos mesmos objetivos: a busca de lucros ilimitados, a “financeirização” do mundo, a destruição dos obstáculos ao poder econômico e o controle dos indesejáveis (pobres e inimigos políticos do neoliberalismo).

Em resumo, com ou sem verniz democrático, o neoliberalismo, que se revela adaptável a qualquer ideologia (inclusive ao fascismo), sustenta e atende à lógica do capitalismo global.

Compreendendo, de forma rápida, a atual conjuntura, que contém entre seus pressupostos a lógica da desresponsabilização como método de dominação social, usando das rupturas e das polarizações porque, em se tratando de pós-verdade, articula-se em um discurso de ideal na qual se faz possível descolar o perigo para um falso lugar, uma falsa oposição. E dentro dessa lógica, mesmo quem quer resistir, também acaba tomado por uma coerção constante se articulando e rearticulando para nos instabilizar e, com isso, nos imobilizar.

 

A nossa paralisia, entretanto, não é uma das saídas possíveis. Como essa olhadela para 2019, olhemos também um pouco mais longe na história, mesmo uma das mais dolorida deste país, para trazer a poesia – sempre ela contra os covardes –  da poetisa e intelectual paraguaia Soledad Barrett Viedma, torturada e assassinada pela ditadura militar brasileira há 47 anos. Ocasião em que sequer foi poupado o filho que ela trazia em seu ventre há quatro meses, mas ela – com a permanência de poetisa – deixou escrita a sina dos que lutam: permanecer.

“Mãe, me entristece te ver assim

o olhar quebrado dos teus olhos azul céu

em silêncio implorando que eu não parta.

Mãe, não sofras se não volto

me encontrarás em cada moça do povo

deste povo, daquele, daquele outro

do mais próximo, do mais longínquo

talvez cruze os mares, as montanhas

os cárceres, os céus

mas, Mãe, eu te asseguro,

que, sim, me encontrarás!

no olhar de uma criança feliz

de um jovem que estuda

de um camponês em sua terra

de um operário em sua fábrica

do traidor na forca

do guerrilheiro em seu posto

sempre, sempre me encontrarás!

Mãe, não fiques triste,

tua filha te quer”

Necessário dizer então que, se desde 2019 ainda não conseguimos dizer quem somos nessa história, é porque ficou claro que ninguém virá nos puxar pela mão para nos mostrar o caminho. Ou seremos engolidos pela pós-verdade e continuaremos escondidos atrás das telas, e isso é ser cúmplice da ruína, ou é hora de superarmos o fato de que existem contradições insuperáveis, próprias de todos esses processos, e começarmos a refazer os laços que por rompemos por causa desta insistência na razão, para assim escrever um futuro que, sem medo do ódio, não se domina por ele.

O primeiro texto do novo ano, imbuído da esperança que sempre nos envolve na virada de cada ciclo, carrega um duplo objetivo: realizar a retrospectiva de 2019 e ratificar nosso compromisso de abandonar a letargia para, num grande exercício de sororidade e de solidariedade, reagirmos a casa injustiça, violação e tentativa de retrocesso. Aos que plantam e regam diariamente essa crise, não daremos a possibilidade de podarem em nós a convicção na semente que ela carrega, de ser um ponto de dissolução das formas, a partir do qual, paradoxalmente, tudo é possível ou, melhor dizendo, tudo está por fazer. Sobrevivemos a 2019 e estamos dispostas a enfrentar o que há por vir. Para isso aqui continuará sendo o front da escrita e das palavras. Resistimos! Resistiremos!

Bem-vindo 2020!

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