Sororidade em Pauta

Os paralelos da vida burguesa com a vida no campo dos refugiados

Segue até o porto mais próximo, deixa tudo para trás, não escolhe o destino

Refugiados fazem fila para receber ajuda alimentar do Programa Mundial de Alimentos. (Foto: MOHAMED DAHIR / AFP) Refugiados fazem fila para receber ajuda alimentar do Programa Mundial de Alimentos. (Foto: MOHAMED DAHIR / AFP)
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No alívio do ar quente do seu carro sedan

A caminho do mercado depois do trabalho

Pensa no jantar, no amanhã, no depois

Obrigada a trocar a cerveja gelada pelo vinho

Depois de uma semana exaustiva que lhe sequestrou a voz

Sente o ar gelado no rosto ao caminhar até o estacionamento

E planeja o próximo verão

No aperto da cela dividida com quarenta e três num espaço mal planejado para oito

A caminho da privada entupida, tropeçando em corpos amontoados

Lembra dos seus filhos, da sua mãe, do seu cachorro

Obrigado a comer o pão que o diabo amassou

Depois do erro arrependido que lhe tomou tudo

Sente o odor de mijo, de fezes, de sangue, de suor e de ódio

E se esforça para lembrar o cheiro do ar

No conforto da sua cama queen e do moletom extralargo de Harvard

Pega outra coberta porque essa noite vai gear, ela ouviu dizer

Brinca que parece um mendigo, usando camadas desconformes de roupas

Enfrenta o frio de dentro de casa, esfrega as mãos, esquenta a sopa, fecha a janela, acende a vela

Abre o livro novo, escolhido dentre vários livros novos ainda não lidos

Rejeita o convite para jantar fondue porque enjoou de queijo

Reclama dos pés que se recusam a esquentar

Na dureza do espaço ocupado por uma caixa de papelão desmontada

Não sabia que ia gear porque ninguém fala com ele

Brinca com o gato que não sabe que ele é mendigo, invisível, inexistente, vestido dele mesmo

Enfrenta o frio da sua casa na rua, se enrola em tudo o que encontra, acende um cigarro achado no chão

Tenta em vão conversar com quem passa por ali, quer contar a sua história, falar amenidades

Odeia camarão, mas aceita o resto de comida porque se recusar a madame se ofende

Agradece em silêncio pelo par de meias furadas encontradas na sarjeta

Perdida na imensidão do shopping, sofre para encontrar o melhor biquíni para o seu corpo curvilíneo

Não sabe lidar com os quilos que ganhou e que lhe consomem a alma

Já perdeu as contas das vezes em que odiou seu próprio corpo

Escolhe o destino, compra as passagens, faz as malas, tira férias

Embarca tranquila com outros turistas encantados com as belezas naturais

Segura o chapéu improvisado enquanto tira a foto dentro do barco

De uma ilha para outra, do mar verde para o oceano azul, acha que é especial

Seus cabelos vermelhos brilham nas águas do mar adriático

Esquece todos os seus problemas, flutua no meio do nada, aproveita o silêncio

Perdido entre os destroços do último bombardeio aéreo, esfrega os olhos para reencontrar a visão

Não vê sua família ou amigos, apenas corpos cobertos de fuligem e partes desprendidas de seus todos

Já perdeu as contas dos ataques químicos das últimas semanas

Segue até o porto mais próximo, deixa tudo para trás, não escolhe o destino

Embarca desolado no primeiro barco disponível, empilhado com mais corpos do que esperança

Segura a criança que quase caiu durante a tempestade enquanto a mãe morria sufocada

De vômito em vômito, de morte em morte, tudo o que queria era ser normal

Nem as águas cristalinas do mar mediterrâneo conseguem limpar suas mãos sujas de sangue

Quer esquecer tudo o que viu, mas não consegue, não pode

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