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O retorno da cultura matrística

Se, de um lado, vivemos cinco mil anos de patriarcado, é certo que vivemos setenta mil anos de cultura matrística.

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“A real importância da Deusa é a anulação do poder dos símbolos patriarcais masculinos sobre a psique e a alma feminina” 

– Carol Christ, escritora e teóloga

Não fomos sempre patriarcais!

Na década de 70, foram desenterradas das entranhas da Terra (na Europa e Oriente Médio), pela arqueóloga lituana Marija Gimbutas (1921-1994), estatuetas e imagens que revelaram ao mundo que nas eras Paleolítica e Neolítica (desde os primórdios da humanidade até cerca de 3.000 a 2.500 a.C.) a humanidade cultuava o sagrado feminino, a Deusa mãe, a grande Criadora, que gerava a vida, nutria e representava os ciclos de vida-morte-vida, a dança mutável dos ciclos da natureza e a interconexão entre todos os seres vivos e não-vivos.

Era a grande tecelã divina, que entrelaçava e conduzia todas as forças da terra e do Cosmos, na abundância harmônica que garantia a vida sagrada na Terra.

Essa descoberta de que “no alvorecer da religião, Deus era mulher” (Merlin Stone) reacendeu memórias atávicas e reabriu o caminho à humanidade ao resgate e reafirmação de valores “sagrados” da Terra, da Natureza e da Mulher (do princípio feminino de gerar e cuidar da vida, proteger e amar, que dizem respeito a toda a humanidade, e não só às mulheres).  

Mirella Faur (romena naturalizada brasileira, pioneira líder espiritual do movimento de retomada do sagrado feminino) chama essas culturas pré-patriarcais de matrifocais e Humberto Maturana (neurobiólogo chileno autor da teoria da biologia do conhecer) as chama de culturas matrísticas. Uma coisa é certa: nem os espiritualistas nem os cientistas chamam essas culturas pré-patriarcais de matriarcais, porque não eram o avesso do patriarcado.

As sociedades matrísticas desconheciam por completo os valores e ações imbricados no emocionar do patriarcado. Desconheciam por completo a apropriação, a dominacão, a opressão, a hierarquia, a submissão, o controle, a obediência, a competição, a guerra, a agressão, a exclusão, a dualidade.

As reconstruções científicas (arqueológicas, sociológicas, neurobiológicas, históricas) do modo de viver das sociedades matrifocais ou matrísticas pré-históricas não revelaram a existência de quaisquer indícios de armas, guerras ou fortificações. Os símbolos e imagens desenterradas revelavam, a par disso, a reverência à Mãe Natureza, à abundância harmônica do equilíbrio da vida e da interconexão dos seres. Não havia sinais de ‘paz’ (entendida paz enquanto ausência da guerra e medo) porque não havia guerra e o medo não era um emocionar que regia suas relações cotidianas.

Havia, nas culturas matrísticas, simplesmente a harmonia do equilíbrio da ordem das coisas como elas são, dadas pela teia cósmica misteriosa e sentida na concretude da vida cotidiana, na abundância da vida gerada, nutrida, mantida e regenerada pela natureza, nas relações igualitárias entre todos os seres humanos (homens, mulheres e crianças) e não humanos, cada um em seu devido lugar de pertencimento ao todo, aceito em suas preciosas diferenças.

Eram sociedades nômades, que migravam seguindo as migrações das manadas, que serviam de alimento não só aos seres humanos mas a outros animais silvestres, como os lobos, que também caçavam animais dessas manadas para exercer seu igual direito de se alimentar. Havia uma confiança mútua, natural  e harmônica entre homens e animais na abundância e autorregulação da vida na Terra.

Em dado momento o ser humano passou a defender essas manadas dos dos lobos de forma sistemática, apropriando-se das manadas. De caçador, o ser humano passou a ser pastor e proprietário. Com isso, primeiro matou os lobos de fome por privá-los do seu alimentos natural. Depois, seus instrumentos de caça viraram armas para matar diretamente os lobos que ameaçavam a segurança de sua reserva acumulada de animais apropriados.

O sentimento de confiança na abundância harmônica da natureza foi sendo substituído pela insegurança e o medo na (in)disponibilidade dos meios de vida.

Essa alteração no emocionar da humanidade trouxe outras três modificações adicionais: o desejo constante por mais (acumulação para gerar o sentimento de segurança); a valorização da procriação (para crescimento do rebanho e da manada para garantir essa acumjulação que gera segurança); e o temor da morte (a morte do proprietário causava a perda de tudo o que tinha sido acumulado, e a morte do animal apropriado desafiava a acumulação e sua segurança).

A fertilidade deixou de ser vivida como coerência harmônica natural na dinâmica cíclica de vida-morte-vida e passou a ser sentida, vivida, como procriação e crescimento que proporcionam segurança.

O homem, até então reverente ao processo de criação feminino da vida, agora imbuído pelo emocionar da apropriação e da valorização da procriação, apropria-se também da procriação da mulher, que passa a ser a ele mero receptáculo de suas sementes para gerar filhos que ficarão com suas riquezas acumuladas e garantirão sua linhagem patrilinear.

O homem apropria-se dessa mulher, desses filhos e da família. As mulheres e crianças perdem suas liberdades ancestrais e tornam-se também propriedades. A sexualidade da mulher é tratada como a sexualidade da fêmea da manada: servem apenas à procriação. E com a valorização da procriação – que se opõe a qualquer ação de regulação de nascimentos e do crescimento da população -, ocorre uma inevitável explosão demográfica animal e humana.

Surgia, assim, ainda incipiente, aproximadamente aos 3.000/2.500 aC, de forma imperceptível e irrefletida, o patriarcado, que foi sendo vivido no cotidiano dos homens e mulheres e das crianças que nasciam no seio dessas comunidades, de forma naturalizada, e, de geração em geração, desde há cinco mil anos (com ênfase nos últimos 20 séculos), vivemos essas novas coordenações mutuamente imbricadas de ações e emocionares, calcadas na apropriação, competição, dominação, hierarquia, controle, obediência, guerra, escravidão, exclusão, dualidade.

Seriam substitutivas da unidade, totalidade, igualdade, cooperação, confiança e harmonia que regia, segundo Maturana, as redes de conversações e as coordenações de ações e emoções da biologia do amor das culturas matrísticas, representadas e evocadas pela figura mística da Deusa Mãe, a Mãe Terra, chamada Gaia para os gregos antigos.

A mística da espiritualidade feminina – de conexão com a natureza abundante, representativa  da coerência dinâmica dos ciclos de vida e morte, e sentida na concretude da vida diária inerentemente terrestre –  foi dualizada (e oprimida) pela mística da insurgente espiritualidade masculina, elaborada pelos pastores que viviam períodos de isolamento nas desafiadoras montanhas com seus rebanhos, sob a imensidão do firmamento celeste, onde presenciavam terríveis fenômenos elétricos, num ambiente cósmico ameaçador e impressionante por seu poder e força provenientes de um ente invisível, transcendente, de autoridade absoluta, perante o qual eram submissos e obedientes.

Essas percepções eram coerentes com os novos emocionares experimentados desde a apropriação dos animais: de hierarquia e obediência a um Deus arbitrário dotado de força e que provocava o medo.

Surgiam “duas verdades” espirituais que se tornaram religiões (“sistemas fechados de crenças místicas, definido pelos crentes como o único correto e plenamente verdadeiro, (…) domínios culturais de apropriação das mentes e almas dos membros de uma comunidade pelos defensores da verdade ou das ‘crenças’ verdadeiras” (MATURANA:2004, 73). Insuflados por essas novas emoções, a humanidade reescreveu mitos e lendas ancestrais, para reafirmar a supremacia do princípio masculino sobre o feminino, dos homens sobre as mulheres.

Eva, cujo nome significava “vida”, foi descrita como “a Mãe de todos os seres vivos” na própria Bíblia, em Gênesis 2-3 (conforme Carol Christ, historiadora e teóloga feminista, em Rebirth of the Goddess). Contudo, o mito original da criação (segundo a qual homem e mulher foram criados do mesmo barro) deu lugar ao mito de Adão e Eva, segundo o qual Eva deixa de ser a “mãe” geradora da vida para então “ser gerada”, passando a ser criação do homem, nascendo das costelas de Adão.

Eva, ainda, ao comer o fruto proibido da árvore do conhecimento (por ser insubmissa e desobediente às ordens do Senhor), foi “culpada” e responsabilizada por banir a humanidade do paraíso. As imagens da árvore, da serpente e da nudez da mulher, que envolvem o mito de Adão e Eva, são também apropriações da iconografia primordial da Deusa.

Gaia, pintura de Anselm Feuerbach (1875).

Mitologia grega

Outro mito, bem significativo e afirmativo da dominação patriarcal e da subjugação da Deusa, é o relato de Homero (700-600 aC) da conquista do templo de Delphos pelo deus grego Apolo. Delphos significava “ventre” (local de nascimento do universo). Era o templo da Deusa Gaia (a Mãe Terra para os gregos). Nesse templo cultuavam-se Gaia (Terra), Phoebe (a Lua) e Themis (a ordem social), todas deusas femininas.

O altar de Gaia era guardado por Píthon, a fêmea de  dragão (animal “meio serpente” sagrado para a espiritualidade feminina) era descrito por Homero como “uma criatura bem nutrida, selvagem, cheia de sangue, causadora de vários males” (autorizando a crença masculina no poder maléfico do sangue menstrual). Apolo mata Píthon (filha de Gaia e guardiã do Oráculo de Delfos) a flechadas, profana a fonte sagrada da Deusa e violenta a ninfa responsável por ela.

Também, na mitologia grega, Atena (deusa da sabedoria, da estratégia e da justiça institucionalizada) é parida da cabeça de Zeus depois de Metis (sabedoria) ser engolida por ele. Atena nasce da cabeça de Zeus já adulta, armada e pronta para a guerra, convicta da supremacia masculina e da herança e linhagem patrilinear, por não ter nascido de uma mãe. Atena, com isso, consolida a teoria do deus Apolo, repetida posteriormente por Aristóteles, de que “a mãe não é parente de seu filho, apenas ama e guardiã da semente colocada nela pelo pai”.

Também Pandora, cujo nome significava “a doadora”, representativa das riquezas e dons de gaia, guardiã de pithos (o vaso sagrado destinado a guardar os mantimentos e enterrar os mortos, representação do ventre da Terra) foi posteriormente descrita como a leviana que abre uma caixa e libera todos os males do mundo.

Mirella Faur em sua obra Círculos Sagrados para Mulheres Contemporâneas, analisa que a negação do ventre materno, a negação do dom da mulher de dar a vida e a afirmação de que o pai é o único criador e o que faz é justo e certo, foi uma inverdade fundamental repetida, encenada, escrita, falada, cantada e ensinada por 20 séculos, passando a ser uma verdade aceita e não questionada, devido ao temor do pecado e da punição, sendo agora desafiada pelo ressurgimento da simbologia do sagrado feminino e pelas memórias atávicas de reverência aos ciclos naturais da vida, de liberdade, harmonia e cooperação.

As religiões e culturas judaico cristãs, foram decisivas ao império definitivo do patriarcado, sustentando ainda a sociedade ocidental moderna.

E, no curso da história, o cristianismo (cultuado na trindade do Pai-Filho-EspíritoSanto que substituiu a trindade original da Mãe-Pai-Filho) foi implacável com a resiliência da espiritualidade feminina e a sabedoria ancestral das culturas matrísticas que insistia em resistir nas mulheres que conheciam o segredo das plantas, eram curandeiras, benzedeiras e parteiras. Foram taxadas de bruxas pela Inquisição da Igreja, que do século XIII ao XVII matou milhares de mulheres nas fogueiras. Essa história a gente já conhece bem.

Recuadas e atemorizadas por séculos de tortura e assassinatos bárbaros, as mulheres voltaram a buscar a retomada de sua liberdade ancestral no fim do século XIX, com o surgimento da primeira onda do movimento feminista. E durante o século XX muitos direitos foram reconhecidos às mulheres, ao passo que começou-se a construir um direito para a natureza também.

Na mesma década de 70 do século XX, em que as imagens e estatuetas da Deusa-Mãe telúrica foram devolvidas à humanidade pela própria Mãe Terra, de suas entranhas (através da arqueóloga Marija Gimbutas), a humanidade começava a se dar conta de que a natureza estava se esgotando, tornando-se incapaz de resistir ao desligamento artificial entre humanidade e natureza, esta tratada como objeto apropriável, a ser dominada, controlada e explorada. 

A consciência de Gaia, enquanto organismo vivo, complexo e inteligente exsurge na Hipótese Gaia ou Teoria de Gaia do britânico James Lovelock, também na década de 70. 

Nessa mesma onda, em 1972, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, povos de todo o globo escreveram a Carta da Terra reconhecendo que a Terra é viva, é nosso lar, e que propiciou todas as condições essenciais para a evolução da vida e que “a proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado” e que, para salvaguardar o futuro, devemos decidir viver com um sentido de responsabilidade universal, identificando-nos com a comunidade terrestre como um todo, bem como com nossas comunidades locais.

Ainda nessa carta, que “o espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida e com humildade em relação ao lugar que o ser humano ocupa na natureza“, respeitando a Terra em toda sua diversidade e cuidando da vida com compreensão e amor. Assim, os princípios do sagrado feminino e das culturas matrísticas ressurgem, reduzidos a termo pela humanidade  nessa declaração de princípios éticos tidos como única esperança na manutenção da vida na Terra.

Desde a década de 70, também, surgem os movimentos ecofeministas, que entrelaçam os movimentos feministas e ecológicos (chamados ambientalistas).

A par das diferentes vertentes do ecofeminismo – uma mais espiritualizada, fundada no sagrado feminino; outra fundada na convicção de uma ligação intrinsecamente natural da mulher com a natureza, por sua capacidade de gerar a vida, amamentar e sangrar com as fases da lua; e, outra sociológica, que afirma que a ligação mais intrínseca da mulher com a natureza foi uma construção cultural, e que o princípio feminino pode ser vivido igualmente por homens e mulheres -, todas têm um denominador comum: a certeza de que as violências perpetradas contra a mulher e contra a natureza são ambas decorrentes da opressão e dominação patriarcal, ações estas imbricadas no emocionar aceito, repetido, aprendido e reaprendido por vinte séculos e ainda vigente nas redes de conversações da cultura atual, que coordenam as ações e emoções ensinadas de geração em geração.

Mas se, de um lado, vivemos cinco mil anos de patriarcado, é certo que vivemos setenta mil anos de cultura matrística.

Cultura essa que ressurge das entranhas da Terra, e reaviva nosso emocionar de harmonia, cooperação e respeito à vida, alterando as redes de conversações e as coordenações de ações e emoções imbricadas mutuamente na formação de uma nova consciência, de uma nova cultura (re)emergente, e em relação à qual nossas crianças (a próxima geração de adultos) estão vivenciando e aprendendo no seu cotidiano: a de que somos parte, de que somos natureza e devemos respeitá-la. Que somos amor.

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