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O remédio vermelho: a sororidade como opção à ausência de diálogo

Na falta do diálogo, a reparentalização pode ocorrer por meio da sororidade

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Por Janine Soares de Matos Ferraz

“A minha alma ‘tá armada

E apontada para a cara

Do sossego

Pois paz sem voz

Paz sem voz

Não é paz é medo

As vezes eu falo com a vida

As vezes é ela quem diz

Qual a paz que eu não quero

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Conservar para tentar ser feliz”

– O Rappa

Então lá estávamos nós, diante do médico. Ele dizia que não desejava mais tomar aquele remédio que estava lhe fazendo mal. Afirmava que não iria mais tomar. O médico insistiu que, de todas as drogas existentes, era a única capaz de melhorar sua condição cardíaca. Ele disse que não iria mais tomar de jeito nenhum. O médico me olhou, trouxe dados técnicos, pediu que ele dissesse quais incômodos o remédio causava. Ele se mostrou nervoso e irritado. Eu o olhei para tentar entender. Então ele me disse que o remédio era vermelho e eu entendi tudo.

Chamei o médico no canto e pedi que ele arrumasse outro remédio de outra cor. O médico ficou confuso, me disse que a situação dele era grave, muito grave, que ele tinha pouco tempo. Depois falou a ele que iria trocar o remédio. Ele se acalmou. Dali ele passou a tomar morfina, até se despedir segurando a minha mão.

Da última vez que escrevi e publiquei, falei sobre diálogo e continuo com o mesmo desejo de dividir pensamentos sobre a forma como tenho aprendido a me comunicar após conhecer e pensar sobre sororidade.

Com a polarização das ideias políticas dos últimos anos, algo que era natural e tranquilo, passou a ter que ser pensado, medido, aprendido, objeto de técnica. Antes a recomendação a ser seguida era aquela que dizia “não é o que se fala, é como se fala”. Hoje, “não é o que se ouve, é como se ouve”.

A opção pela fala dócil, embora seja uma escolha importante para o entendimento, algumas vezes retira a autenticidade da conversa e pode ser uma amarra que infantiliza as pessoas. Pode ser um sinal de ausência de confiança ou de desistência do outro. A crença de que o outro não vai recepcionar bem a fala, não vai aguentar o assunto e a ideia, o fato das coisas serem ditas.

Isso porque o julgamento sobre a natureza violenta do que foi falado foi antecipado à expressão da ideia. Passou a ser decidido pela qualidade atribuída ao interlocutor ou pela etiqueta que se decidiu pregar nele.

Há uma fragilidade no ouvir. Uma escolha antecipada e deliberada sobre o que se deseja entender da fala do outro. Não raro as pessoas discutem, embora compartilhem ideias comuns. Os receios dos rótulos, a prisão das caixas, o apego às superestruturas destroem cotidianamente a capacidade de ouvir e concordar ou ouvir e aceitar o pensamento diferente. Embora o respeito ainda seja um valor para ambos os interlocutores.

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A desistência do diálogo é uma escolha muito triste. Nem sempre esta escolha tem a ver com ausência de amor ou vontade de estar junto, de partilhar a vida. Às vezes, representa apenas um cansaço ou a crença que não há jeito. Busca-se uma paz e descobre-se  que o que se alcançou foi apenas o fruto do medo. Foi uma ausência de exposição de ideias, de um mergulho profundo nos relacionamentos, de um acesso ao outro em sua inteireza.

Vivemos o tempo da escolha pela superficialidade para que o outro não quebre, não parta, não se frustre, não se decepcione, mas também não cresça, não se transforme. Estamos cansados de perder e cedemos à oportunidade de viver pouco para não ter que morrer tanto.

Estamos com medo até de quem amamos. Deixamos de ver no outro um apoio, guarida, e passamos a vê-lo inquisidor, concorrente. Não o vemos como alguém que deseje partilhar conhecimento, mas como quem deseja retirar-nos o pouco espaço de afirmação que nos resta.

Tudo se tornou líquido. Não se sabe mais o que é fake e nossos relacionamentos estão sempre sob avaliação, a uma opinião de desabar. O medo tem sido fator decisivo para a eliminação do diálogo.

Ele tinha medo que eu fosse comunista. Logo eu que me envergonho de não ter lido Marx na minha escola onde estudei Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira. Cantava o hino todos os dias na fila antes do início das aulas e rezava o Pai Nosso.

Ciente da sua luta contra um adversário real – o câncer, quando ia visitá-lo, sentia vontade de contar sobre meus projetos, as pessoas que havia conhecido, os livros que estava lendo e que me lembravam muitas coisas que ele viveu e me ensinou como valor – a solidariedade, o respeito ao outro, a responsabilidade, a possibilidade de transformar conflitos, de contribuir  para diminuir a dor do outro.

Mas, o medo o compelia a passar todo o tempo falando de inimigos imaginários, de preocupações que não deveriam ocupá-lo, de valores que ele não trazia em si com uma linguagem que não lhe era própria porque não foi a que me ensinou. Aquela linguagem derramada nas redes sociais, no grupo do whattsapp, que ele recebia diuturnamente e confiava, pois pertenceu a uma geração onde as informações divulgadas passavam por alguma peneira ética.

Eu queria sair correndo, era cansativo, destruidor.

Mas, a sororidade me ensinou sobre machismo estrutural, sobre a psicologia do medo, sobre dominação e acima de tudo sobre escuta ativa e amor.

E este aprendizado me conduziu a deitar ao lado dele e deixar que falasse o que desejava. Permitiu-me decidir ouvir que ele queria que eu me preservasse dos inimigos reais e fosse forte para combater o bom combate. Que eu não fosse ingênua e preservasse a minha liberdade. Que havia razões para que ele confiasse em mim. E me deu a oportunidade de dar meu amor e recepcionar serenamente o dele.

Sinto muito que a estrutura rígida e o medo não tenham permitido que dialogássemos. E me consolo que a sororidade tenha me permitido dar a escuta sem julgamento e, a partir desta, receber o silêncio amoroso e o pedido para que eu voltasse a cantar, a me dedicar a arte de tocar violão e dedilhar as músicas que ele gostava.

“Onde estiveres agora, nosso bom Deus te guarde!”.

Foto: The Artist’s Father on His Sick Bed, por Franz Mark (1907).

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