Laura Benda

[email protected]

Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região e atualmente é Juíza do Trabalho do TRT da 2ª Região. É diretora de direitos humanos da AMATRA 2 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região – biênio 2018/2020) e ex-Presidenta da AJD (Associação Juízes para a Democracia - biênio 2017/2019). Escreve na coluna Sororidade em Pauta.

Opinião

O mundo em puerpério

Na pandemia muitas pessoas puderam experimentar a sensação de vida paralisada, de isolamento profundo, de incerteza.

Bruno Cecim/Ag.Pará
Apoie Siga-nos no

Não existe uma forma única de maternidade. A experiência e os sentidos advindos dela são tão múltiplos quanto qualquer outra experiência humana, ao contrário do que costuma insinuar a publicidade de produtos infantis. O momento da chegada do filho, entretanto, normalmente traz um assombro quase paralisante, ao menos para quem se dá conta do que acaba de ocorrer. Começou o puerpério.

A literatura médica define essa etapa como “período que decorre desde o parto até que os órgãos genitais e o estado geral da mulher voltem às condições anteriores à gestação”, o que, para a mesma literatura, significa o transcurso de 45 ou 60 dias ou, também, voltar a menstruar. O conceito é altamente contestado pelas feministas. Uma recuperação das funções físicas essenciais ou a possibilidade biológica de engravidar novamente não significa um retorno da mulher que havia antes. Ela, de fato, não voltará jamais. Mais do que qualquer outra coisa, a experiência do luto por essa perda de si mesma é, efetivamente, o puerpério. Não é outra a razão de o termo poder ser utilizado, inclusive, para mães que adotam.

Mas, na situação mais corriqueira, você acabou de parir o filho que havia gerado. O corpo está extenuado pelo esforço ou invadido pela cirurgia e, sem que haja tempo para recuperação, precisa aprender novas funções, de amamentar e de cuidar. Os primeiros dias seguem e a sensação é de que tudo está fora do lugar. Sobrou um corpo em escombros que sente uma mistura enevoada de cansaço, dor, amor, dúvida. Inicia a acachapante rotina de cuidado do bebê e esquecimento da mulher.

 

Nas situações mais privilegiadas, existe divisão de tarefas ou ajuda, em especial nos primeiros dias ou nas primeiras semanas. Do pai, dos avós, ou mesmo uma ajuda contratada. Com o passar do tempo, o pai volta ao trabalho, os avós voltam para casa. Restam a mãe e o bebê, numa sucessão de dias e noites iguais. Mesmo quando mais alguém está, é quase como um visitante em um país estrangeiro. A vida dos outros segue no mundo e, é claro, no ritmo do mundo. A vida da mãe, simbiótica com o bebê, segue lenta e recolhida, não importa a quantas pracinhas ela vá passear levando o carrinho ou o sling.

Há uma solidão palpável, independente de quantas mensagens no whatsapp a mãe receba perguntando – sempre – sobre o bebê. E assim será, até que a própria passagem do tempo e da vida resolvam o luto da mãe e ela tenha condições de, talvez até com alegria, reconhecer a nova mulher que agora a habita. A aceitação de si mesma substitui a falta de compreensão dos outros em relação à sua experiência invisível.

Desde que a epidemia de Covid-19 alastrou-se pelo mundo, um fenômeno curioso começou a ocorrer. Aqueles que puderam ou precisaram ficar em quarentena têm a chance de vislumbrar o que é viver o puerpério. A sensação de vida paralisada, de isolamento profundo, de incerteza. O peso dos dias e noites que se repetem, numa sucessão infindável de tarefas que se acumulam e se confundem. O mundo se reduz às questões domésticas, às crianças, a trabalho. O outro não é mais do que uma imagem abstrata em uma chamada de vídeo. Não à toa, alguns estudos preliminares indicam que, somente nos primeiros dois meses da quarentena, os casos de depressão e ansiedade dobraram.

É importante ressaltar que não se está comparando a possibilidade de contaminação por um vírus mortal com a chegada de um bebê. Esses dois fatos são, sem sombra de dúvida, completamente distintos, inclusive porque o segundo costuma trazer, também, muita felicidade. Mas é interessante que as pessoas (algumas pessoas, pelo menos), em conjunto, experimentem a sensação de estar em isolamento social por um tempo prolongado. Que vivenciem como essa situação pode ser angustiante e dolorosa.

Em um sentido amplo, não é nada provável que após tantas mortes, violências e abandono estatal, saiamos melhor dessa pandemia, como sociedade. Seria positivo se, ao menos na pequeneza das relações privadas, as mães puérperas pudessem passar a receber um pouco mais de empatia.

Não existe uma forma única de maternidade. A experiência e os sentidos advindos dela são tão múltiplos quanto qualquer outra experiência humana, ao contrário do que costuma insinuar a publicidade de produtos infantis. O momento da chegada do filho, entretanto, normalmente traz um assombro quase paralisante, ao menos para quem se dá conta do que acaba de ocorrer. Começou o puerpério.

A literatura médica define essa etapa como “período que decorre desde o parto até que os órgãos genitais e o estado geral da mulher voltem às condições anteriores à gestação”, o que, para a mesma literatura, significa o transcurso de 45 ou 60 dias ou, também, voltar a menstruar. O conceito é altamente contestado pelas feministas. Uma recuperação das funções físicas essenciais ou a possibilidade biológica de engravidar novamente não significa um retorno da mulher que havia antes. Ela, de fato, não voltará jamais. Mais do que qualquer outra coisa, a experiência do luto por essa perda de si mesma é, efetivamente, o puerpério. Não é outra a razão de o termo poder ser utilizado, inclusive, para mães que adotam.

Mas, na situação mais corriqueira, você acabou de parir o filho que havia gerado. O corpo está extenuado pelo esforço ou invadido pela cirurgia e, sem que haja tempo para recuperação, precisa aprender novas funções, de amamentar e de cuidar. Os primeiros dias seguem e a sensação é de que tudo está fora do lugar. Sobrou um corpo em escombros que sente uma mistura enevoada de cansaço, dor, amor, dúvida. Inicia a acachapante rotina de cuidado do bebê e esquecimento da mulher.

 

Nas situações mais privilegiadas, existe divisão de tarefas ou ajuda, em especial nos primeiros dias ou nas primeiras semanas. Do pai, dos avós, ou mesmo uma ajuda contratada. Com o passar do tempo, o pai volta ao trabalho, os avós voltam para casa. Restam a mãe e o bebê, numa sucessão de dias e noites iguais. Mesmo quando mais alguém está, é quase como um visitante em um país estrangeiro. A vida dos outros segue no mundo e, é claro, no ritmo do mundo. A vida da mãe, simbiótica com o bebê, segue lenta e recolhida, não importa a quantas pracinhas ela vá passear levando o carrinho ou o sling.

Há uma solidão palpável, independente de quantas mensagens no whatsapp a mãe receba perguntando – sempre – sobre o bebê. E assim será, até que a própria passagem do tempo e da vida resolvam o luto da mãe e ela tenha condições de, talvez até com alegria, reconhecer a nova mulher que agora a habita. A aceitação de si mesma substitui a falta de compreensão dos outros em relação à sua experiência invisível.

Desde que a epidemia de Covid-19 alastrou-se pelo mundo, um fenômeno curioso começou a ocorrer. Aqueles que puderam ou precisaram ficar em quarentena têm a chance de vislumbrar o que é viver o puerpério. A sensação de vida paralisada, de isolamento profundo, de incerteza. O peso dos dias e noites que se repetem, numa sucessão infindável de tarefas que se acumulam e se confundem. O mundo se reduz às questões domésticas, às crianças, a trabalho. O outro não é mais do que uma imagem abstrata em uma chamada de vídeo. Não à toa, alguns estudos preliminares indicam que, somente nos primeiros dois meses da quarentena, os casos de depressão e ansiedade dobraram.

É importante ressaltar que não se está comparando a possibilidade de contaminação por um vírus mortal com a chegada de um bebê. Esses dois fatos são, sem sombra de dúvida, completamente distintos, inclusive porque o segundo costuma trazer, também, muita felicidade. Mas é interessante que as pessoas (algumas pessoas, pelo menos), em conjunto, experimentem a sensação de estar em isolamento social por um tempo prolongado. Que vivenciem como essa situação pode ser angustiante e dolorosa.

Em um sentido amplo, não é nada provável que após tantas mortes, violências e abandono estatal, saiamos melhor dessa pandemia, como sociedade. Seria positivo se, ao menos na pequeneza das relações privadas, as mães puérperas pudessem passar a receber um pouco mais de empatia.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo