3ª Turma

Marta Harnecker e suas ideias para a luta

Marta identificava na América Latina o berço da oposição ao neoliberalismo e sua ofensiva contra direitos sociais e ambientais.

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A morte de Marta Harnecker no dia 15.06.2019 foi, como todas, simples. Como já nos advertiu Vinícius de Moraes, é coisa simples a morte. Dói, depois sossega. Marta nasceu em Santiago do Chile em 1937 e faleceu em Vancuver, no Canadá. No decorrer desses 82 anos se tornou psicóloga, jornalista, educadora marxista, socióloga e escritora com mais de 80 livros publicados. No Chile graduou-se em psicologia e fez pós-graduação em Paris onde estudou com Paul Ricoeur e Louis Althusser. Em 1968 retornou ao Chile, foi professora de materialismo histórico e economia política no curso de Sociologia na Universidade do Chile e foi diretora do semanário político Chile Hoy.

Aceitou o desafio de Marx e usou conhecimento acadêmico, escrita e docência para mudar o mundo ao invés de somente interpretá-lo. Definia como esquerda “o conjunto de forças que lutam para construir: […] uma sociedade de trabalhadores de trabalhadoras organizados mediante uma lógica humanista e solidária” e que, para além da luta pela igualdade expressa no combate à miséria material e espiritual, represente “também a rejeição a um modelo aberrante de sociedade baseada na exploração e na lógica do lucro: o modelo capitalista”.

De 1970 em diante militou no Partido Socialista e participou ativamente do governo de Salvador Allende, quando o contato direto com camponeses e operários a fez perceber um conhecimento para além da cátedra. “Os trabalhadores aprendiam para aplicar imediatamente, então eu me apaixonei por esse trabalho com esses setores”. O governo Allende é interrompido pelo golpe militar de 11.09.1973 e Marta parte para Cuba, onde continua a perseguir seu sonho atuando como diretora do Centro de Investigaciones Memória Popular Latinoamericana de la Habana. Mais tarde vai para a Venezuela participar do governo de Hugo Chávez, do qual foi conselheira entre 2002 e 2006, sendo responsável pelo Centro Internacional Miranda em Caracas.

Marta era uma entusiasta das experiências latino-americanas de tentativa de construção de um socialismo enraizado nas nossas tradições, moldado para as nossas peculiaridades ao invés de importar modelos revolucionários desatentos ao nosso capitalismo periférico, tão próprio e que só existe nesse espaço-tempo que ela chama de “nosso subcontinente”; um socialismo com gosto de “vinho e empanadas” no dizer de Allende, ou que não fosse “decalque nem cópia” como pretendia Hugo Chávez. 

É com essa perspectiva que ela identifica na América Latina o berço da oposição ao neoliberalismo e sua ofensiva contra direitos sociais e ambientais, por ser também o local usado pelas grandes potencias como laboratório das experiências econômicas neoliberais, impostas inicialmente no Chile a partir de 1973 e logo depois concretizadas na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Suas análises materializam o que hoje se chama pensamento de fronteira, ou seja, a construção de um conhecimento a partir das experiências e dos saberes que estão fora dos parâmetros eurocêntricos, mas sem negar a contribuição desse conhecimento. Provincializou a Europa sem descartá-la e, assim, se permitiu um olhar diferente, apaixonado e amoroso, identificado com a luta e resistência latino-americanas, que vê boas idéias para a luta onde o pensamento tradicional vê apenas um povo atrasado e ignorante. 

“É preciso se aproximar do pensamento também por meio do coração”, diz Marta. Mais do que teorias acadêmicas, suas idéias surgem das lutas e experiências práticas e talvez por isso ela trate com tanto carinho e cuidado as formas nada ortodoxas, porém muito criativas e potentes, inventas pela população massacrada para se opor à opressão própria do neoliberalismo, que apensar de ser um fenômeno mundial tem efeitos diversos em países centrais e periféricos e ainda mais peculiares na América Latina, onde surgiu através de um parto nada natural.

Uma mulher apaixonada por pessoas, idéias, sonhos, povos. Praticou o que Audre Lorde chama de “usos do erótico”, ou seja, “um recurso que mora no interior de nós mesmas, assentado em um plano profundamente feminino e espiritual”, uma força que não se confunde com excitação genital ou mecânica sexual e é o contrário da pornografia. “É um senso íntimo de satisfação ao qual, uma vez que o tenhamos vivido, sabemos que podemos almejar”. Acredito que a potência de Marta venha exatamente do poder gerado pela sua habilidade nesse uso do erótico de que nos fala Audre.

Em Cuba, Marta se casou com Manuel Piñeiro Losada, o Barbarroja; com ele teve uma filha, Camila Piñeiro, e dele ficou viúva em 1998. Manteve uma relação conflituosa com o dirigente comunista português Miguel Urbano Rodrigues que, atordoado, admitiu estar um problema seriíssimo: estava apaixonado por uma mulher mais inteligente do que ele! Marta, por sua vez, “deixava claro que a relação entre eles era basicamente sexo. Além disso, não havia futuro”, por considerar excessivos os dez anos a mais do companheiro. Casou-se, então, com o economista marxista canadense Michael Lebowitz, dois anos mais novo que ela e com o qual permaneceu casada até falecer.

Definitivamente, Marta não é nem nunca será um cadáver sob um lençol. Uma “americana” no seu sentido mais amplo e profundo. Esteve muitas vezes no Brasil, aqui escreveu um livro sobre a “história do Partido dos Trabalhadores narrada por seus protagonistas” fez amigos como Renée e Apolônio de Carvalho, andou por toda a América colecionando idéias para a luta a partir das diversas experiências do “nosso subcontinente”. Buscou sempre caminhos que tornassem possível construir um mundo mais fraterno, solidário e justo, uma sociedade profundamente democrática e inclusiva e, acima de tudo, recusava-se a deixar de sonhar. 

Marta querida, “não te direi adeus, de vez que acordaste em mim” e a sua morte nos dá vida em prosseguimento a tua, tenha certeza que seremos milhares de martas a seguir sua luta, “na vanguarda do futuro/ Para um mundo em paz”.

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