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Entre a raiva e o amor, a revolução

Audre Lorde, feminista negra, nos fornece importantes lições sobre a raiva, o amor e a revolução

Audre Lorde (Foto: Getty Images)
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“Fomos socializadas para respeitar mais ao medo que às nossas próprias necessidades de linguagem e definição, e enquanto a gente espera em silêncio por aquele luxo final do destemor, o peso do silêncio vai terminar nos engasgando” 

– Audre Lorde

Parte 1: A raiva

Raiva. Tenha raiva. Muita raiva. Frente a discursos de ódio, o sentimento esperado é a raiva. Comentário racista? Banalizou o trabalho infantil? Fez pouco caso do trabalho escravo? Consentiu com o genocídio indígena? Saudou torturador? Reprime o amor alheio? Não tenha apatia. Não fique com a tristeza. Melancolia nem pensar. Escolha a raiva.

A raiva é um sentimento extremamente poderoso. É a nossa oposição a um sistema injusto, que hierarquiza seres humanos. É a manifestação de repulsa à opressão. De um legítimo inconformismo. Especialmente nós, mulheres, fomos doutrinadas durante a vida a não manifestarmos a raiva. A silenciarmos. Sorrirmos e nos comportarmos direito. Respondermos quando perguntadas. Corpos dóceis e gentis. 

A sua raiva, apesar de tudo, está aí dentro, acredite. 

A raiva é tempestade de inverno a mostrar a força da natureza que, ao mesmo tempo em que derruba as velhas árvores, rega os campos e permite o florescimento na primavera. É tão importante para o ciclo da vida quanto o sol. Mas, nessa sociedade de felizes sorridentes, cada vez mais deprimida e medicada, estamos engolindo a tempestade com doses de rivotril. 

Esteja atento para diferenciar a raiva do ódio. O ódio é a manifestação antiamor. Ódio é um sentimento que destrói, que mata e que adoece. O ódio é o sentimento que surge quando os privilégios sociais são abalados. Quando o/as negro/as entram na Universidade; quando o direito de propriedade é limitado para garantir a permanência dos povos tradicionais; quando ocorre a redistribuição de renda. Não existe nada mais reacionário do que o ódio. É preciso muito ódio para querer conservar as coisas como estão, vivendo no país mais desigual da América Latina. É preciso, alias, desumanizar o outro – e, com isso, perder a sua própria humanidade. O ódio constrói o fascismo.

Frente às opressões e às desigualdades que marcam a nossa sociedade, todo/as temos que reagir com raiva. Deixe de lado a anestesia. Abandone os manuais de autoajuda. Esqueça o que você aprendeu sobre a raiva. Ela não precisa – e não deve – ser silenciada. O silenciamento da raiva vai te deixar doente.

Repito: tenha raiva. E use essa raiva, inclusive, como uma forma de criar espaços para o amor.

Tenho aprendido com a minha própria raiva na mesma medida em que perdi o medo da raiva das mulheres negras. Aliás, na medida em que aprendi sobre o meu preconceito com a raiva delas. Audre Lorde fez da raiva poesia e manual de uso. Seus ensinamentos são muito valiosos. Ela lembra que

não é a raiva de mulheres Negras que está escorrendo sobre este mundo como um líquido doente. Não é a minha raiva que lança foguetes, gasta mais de sessenta mil dólares por segundo em mísseis e outros agentes de guerra e morte, mata crianças nas cidades, estoca gás de nervos e bombas químicas, sodomiza nossas ilhas e nossa terra”.

Não é a raiva que temos que temer. Temos que senti-la e usar todo o seu potencial criativo e de transformação. “Aquelas de nós (mulheres negras) que não aprenderam isso, não sobreviveram. E parte da minha raiva é sempre uma queda pelas minhas irmãs que caíram”.

Ato de mulheres contra Bolsonaro. Foto: Rovena Rosa/EBC

10 ensinamentos sobre a raiva

Vendo amigo/as querido/as “Doentes de Brasil” me lembrei da importância dos ensinamentos da Audre Lorde e resolvi compartilhar algumas reflexões sobre a raiva. Espero que sejam úteis também para você:

1 – Aprenda a reconhecer a sua raiva e diferenciar do seu ódio. Ódio é um sentimento que nos impede de ver humanidade no outro. Nos leva a enxergá-lo sempre como inimigo. É uma energia de aniquilação e que nada constrói. É o ódio que mata, que não suporta o diferente, que oprime. Não há nada mais reacionário do que o ódio!

2 – Aprenda a direcionar a sua raiva às causas que a originam. “A raiva é cheia de informação e energia”. Se olhe no espelho, reflita sobre a origem dos seus sentimentos e tire tempo para cuidar de você. Autoconhecimento é a chave para aprender a lidar com a sua raiva. A sua tendência será sempre manifestar a raiva em ambientes seguros e de acolhimento. Cuidado para não desestabilizar esses ambientes com a sua raiva canalizada para questões que nada tem a ver com ela. Se você não souber explicar de onde vem esse sentimento, seus amigo/as também podem não entender. E a sua raiva irá muito mais longe quando encontrar eco no coletivo. 

3 – Saia das redes sociais. Não desperdice a sua raiva com o compartilhar desenfreado de textos e notícias que, quando muito, chegarão à linha do tempo daqueles que já pensam como você, tal qual definido pelo algoritmo. Vá ler um livro, colocar o pé na terra. Dançar. Transforme a sua raiva (também) em poesia. Convide seus amigo/as. Vá num show. Cantem juntos em um misto de raiva e amor. A sua raiva só vai tornar a sua alegria mais verdadeira. No lugar de contatos virtuais, resgate os encontros presenciais.

4 – Procure espaços de construção coletiva. Pode ser perto da sua casa mesmo. Lugares de reunião onde pessoas, com a mesma raiva e inconformismo do que você, estejam pensando em formas de fazer as coisas de um modo diferente. Participe de movimentos sociais que questionem as estruturas de opressão do sistema – porque esta é a origem última da sua raiva, acredite. A raiva é uma potência de energia criativa e transformadora, capaz de abalar a estrutura. Use-a. 

5 – Você não é um herói ou uma heroína. Não existe nada mais patriarcal do que o simbolismo da guerra. Isso tudo é uma caminhada, um longo processo de aprendizado. Então não fique ansioso em salvar o mundo. Use essa energia para criar e manter os espaços de construção coletiva que possibilitem, dentre muitas outras coisas, a manifestação da sua raiva de forma relativamente segura. Você não é responsável por transformar o opressor. Você só precisa reagir frente à opressão, da forma mais enfática possível. Para isso, as mãos dadas.

6 – Nos necessários intervalos de raiva, tire um tempo para você e para os seus afetos. Assista um filme, conecte-se com a natureza. Leia poesia. Em tempos de ódio, muita poesia. Só de raiva, ame muito. Para isso fique bem, antes de tudo. Cuide e seja cuidado. Peça ajuda quando as coisas estiverem difíceis. Estamos junto/as nessa. Não esqueça: somos multidão.

7 – Não tenha apego aos espaços de construção coletiva. Associações, sindicatos, movimentos sociais são importantes, tratemos com carinho. Mas são apenas espaços – infinitamente menos importantes do que as pessoas que estão dentro deles. Algumas vezes, os ciclos se encerram, os seus próprios projetos se expandem ou se voltam para outras direções. Canalize a sua energia para outro espaço que tenha a ver com você, com o seu novo ciclo. Disputas internas de poder, tentativas de opressão e dominação do/a outro/s não são manifestações de raiva, mas sim de ego.

8 – Algumas vezes álcool, medicamentos e outros vícios são necessários para suportar o sistema. Saiba, contudo, que eles estão reprimindo a sua raiva. 

9 – Grite. A raiva às vezes sai mesmo aos gritos. Eu não tenho dúvida. Chegou a hora de gritar. Se formos decentes, gritaremos com você. Depois de gritarmos toda a nossa raiva, nos abraçaremos por saber que a inconformidade de um/a encontrou eco em outro/a. Ou em muito/as outro/as. Até que o barulho se torne tão alto e poderoso que a sua indignação silencie a opressão.

10 – Escute. Não esqueça o poder da raiva. Raiva pode ser um sentimento poderoso demais para que você consiga canaliza-la individualmente. É construindo no coletivo que as melhores soluções surgem. E aprenda a não silenciar a raiva do/a outro/a com a sua raiva. Não caia nas armadilhas do ego. Você não é o centro do mundo e as opressões não podem ser hierarquizadas. Somos todos seres interdependentes e interconectados. Reproduzimos nós também as estruturas de opressão social. Se nos investigarmos de forma minuciosa, honesta, encontraremos o sexismo, racismo e elitismo dentro de nós. Temos, com urgência, que aprender com a raiva alheia. 

Aprender com a raiva alheia é também perceber que a maioria de nós, brancos, quando vai refletir sobre a conjuntura em que nos encontramos, buscando construir estratégias para fazer frente a este estado de coisas, procura as soluções nas mesmas fontes de sempre. Seguimos procurando em intelectuais homens, brancos e, não raro, europeus, soluções para problemas causados por homens, brancos e, não raro, europeus.

Cegados por nossos próprios preconceitos, por nosso próprio autoritarismo (a hierarquizar seres humanos e reconhecer conhecimento em uma pequena fatia deles), deixamos de buscar respostas para os nossos problemas nos homens e – principalmente – mulheres negras que sempre conseguiram sobreviver ao estado de exceção permanente que nós, também opressores, temos produzido e reproduzido ao longo do tempo.

Por isso perca o medo da raiva alheia. Leia Audre Lorde, bell hooks. Grada Kilomba. Djamila, Sueli e Conceição Evaristo.

Se queremos fazer frente ao ódio irracional que se multiplica na sociedade brasileira, buscando formas de resistência e de re-existencia, temos que aprender com elas. Estimularmos umas às outras – e uns aos outros também – a manifestar a nossa raiva, como única forma de construir uma sociedade mais justa e igualitária, livre de opressões.

Como lembra Audre Lorde,

“toda mulher tem um arsenal bem guardado de raiva potencialmente útil contra aquelas opressões, pessoal e institucional, que fez com que aquela raiva existisse. Focadas com precisão elas podem se tornam poderosas fontes de energia servindo o progresso e mudança. E quando eu falo de mudança, eu não quero dizer a simples mudança de posições ou uma diminuição temporária das tensões, ou a habilidade de sorrir e se sentir bem. Eu estou falando da alteração básica e radical dessas presunções que sublinham as nossas vidas (…). Eu não sou livre enquanto outras mulheres são prisioneiras, mesmo quando as amarras delas são diferentes das minhas. E eu não sou livre enquanto outra pessoa de Cor permanece acorrentada. Nem nenhuma de vocês é.”.

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