Sororidade em Pauta

Afetos indisciplinados

É preciso reclamar o plano dos vivos, recalcitrantes, vacilantes, desviantes, mas pulsantes

Leonora Carrington, Amor que move o sol e as outras estrelas, 1946
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Parto do lugar de quem vive uma contingência amplificada pela tecnologia. Desde essa posição, compartilho o alerta de que, apesar de e através da pandemia, somos interpeladas por situações capazes de agudizar vulnerabilidades. Tais ocasiões, apesar de triviais quando colocadas em perspectiva, constituem fragmentos que instigam a construção coletiva de outros tipos de afetos.

Imagine uma interrupção abrupta de um circuito comunicativo estabelecido pelo aplicativo de mensagens, seja a partir de um simples block, uma resposta ríspida ou um ignorar deliberado. Mais do que nunca, demissões de toda a sorte chegam através das telas, mediadoras subjetivas de uma era digital especialmente caracterizada pela eventualidade de que se afastar daquilo que não se quer encarar nunca foi tão fácil, ao ponto de fazer-nos esquecer que desencontros e impossibilidades sempre existiram. Uma expressão em particular tem ganhado projeção nos últimos tempos, sobretudo para certas vertentes feministas: responsabilidade afetiva.

O termo presta-se tanto a apontar a ausência de cuidado por parte de um que provoca no outro dor desnecessária quanto a importância de invocar-se a empatia enquanto prática orientadora das relações interpessoais.

Enquanto isso nós, mulheres, habitamos no imaginário coletivo o signo do pecado por excelência, enquanto à figura dos homens são reservados os poderes de redenção. Toda essa construção milenar chega de forma tão contundente ao ponto de prevalecerem predicados negativos que justificam e endossam nossas exclusões e apagamentos em várias esferas interrelacionais.

Assim, como projetar tamanha densidade conceitual naqueles indivíduos que, ensimesmados, não elaboram sobre os próprios traumas, medos, impulsos abusivos e desejos? E se estivermos tentando estabelecer um contrato entre partes incapazes de assiná-lo? Como não aplastar o singular contido no universal assimétrico?

Eis que entramos no embaralhado campo do empobrecimento de afetos perturbados, afeições indisciplinadas por excelência. Porque talvez a questão de fundo sequer seja a necessidade de submetê-los a qualquer tipo de regra, mas sim identificar o estrangeiro que habita cada um de nós.

Trata-se de aprender a lidar com afetos estranhos e errantes. Refere-se a tentar encontrar meios de escolher melhor. Destacar essas dinâmicas permite-nos vivê-las de outro modo.

Reunião, de Remedios Varo, 1959.

Depositar tudo na conta do patriarcado talvez signifique ingenuamente reproduzir, por outros meios, práticas que se pretende superar, seguindo um atalho que dificulta à condução rumo a autonomia.

No atual contexto, fatos do árido real, tais como a dispensa de um emprego, o término de uma relação ou o simples desaparecimento do outro das nossas vidas, ao ocorrerem no campo das redes sociais, escancaram uma falta de controle sensorial e situacional que erroneamente pensamos ter existido. Conceitos como ghosting[1] entram nessa equação, mas são incapazes de exaurir a matéria.

É preciso reclamar o(s) plano(s) dos vivos, recalcitrantes, vacilantes, desviantes, mas pulsantes. Aqui, se trata de recusar a manter um afeto animado pelo sofrimento que ele provoca. Significa aprender a envolver-se nos amores de forma diferente e suprimir do outro, na medida do possível, o potencial poder que ele pode exercer sobre nós, fornecendo resposta que atualiza o presente e projeta um futuro implicado. É se autorizar sonhar outros tipos de afetos ancorados na indisciplina como pressuposto e na implicação como consequência. É poder estar no mundo a exemplo da flor, essa parte da planta que “mostra, frequentemente, um mecanismo inverso: o da desapropriação de si[2].

E aqui eu, mulher branca, penso com as contribuições dos feminismos negros que trasladam o debate para um plano mais prático. Decerto seja útil deslocar para o campo político a questão e retomar o conceito de autocuidado em Audre Lorde[3], que afirma: “cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é autopreservação, um ato de luta política”. Não se trata, portanto, de uma noção individualista, mas o estabelecimento intrapessoal de limites que possibilitam a multiplicação exterior de redes de apoio genuínas, porque o rompimento dos ciclos de opressão é ato coletivo.

Lélia González[4] ressalta a importância da própria voz e do ato de reescrever a narrativa pessoal, em vez de diluir-se nos relatos escritos por outros. Isso significa ultrapassar padrões destrutivos e aprisionadores a partir da reapropriação do próprio discurso, independentemente da resposta que possa partir da alteridade.

Quiçá nesse contexto, a ousadia maior talvez seja seguir apostando no poder curativo e transformador dos amores[5], sobretudo em tempos de aceleração e desamparo. Destaco o valor da amizade, especialmente aquela existente entre mulheres, e o poder articulador e mobilizador promovido pela não dissociação entre o particular e o comum.

Assustemos o fantasma com a reação ao susto que ele provoca. Acostumemos à sua presença, sem necessariamente aceitá-la. Que não percamos o devir flor multiplicador. Afinal, somos reprodutoras viscerais de nós e dos outros, em todos os sentidos possíveis. E o que é isso se não ser contínuo laboratório da própria liberdade?


[1] Derivado do inglês ghost, o termo descreve o término repentino de um relacionamento sem deixar explicações.

[2] Emanuele Coccia in La vie des plantes: une métaphysique du mélange, 2016.

[3] Audre Lorde in A Burst of Light: Essays, 1988.

[4] Lélia Gonzalez in Racismo e sexismo na cultura brasileira, 1984.

[5] bell hooks in All About Love: New Visions, 1999.

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