Justiça

A desigualdade de gênero é uma preocupação socialista?

A partir do pensamento marxista, Clara Zetkin formulou pensamentos sobre a desigualdade de gênero

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Ao se tratar da desigualdade de gênero na perspectiva da filosofia, há que se ressaltar que nem todos os pensadores elaboraram a questão sob a égide dos princípios liberais. Em verdade, o problema da subordinação das mulheres e a necessidade de sua libertação foram reconhecidos por todos os grandes pensadores socialistas do século dezenove. Charles Fourier, o mais ardente defensor da libertação das mulheres e da liberdade sexual, entre os primeiros socialistas, escreveu em passagem conhecida:

“A mudança em uma época histórica sempre pode ser determinada pelo progresso das mulheres no sentido da liberdade, porque na relação da mulher para o homem, do fraco para o forte, é mais evidente a vitória da natureza humana sobre a brutalidade. O grau de emancipação das mulheres é a medida natural da emancipação geral”[1].

Ao passo que as idéias de Fourier permaneceram no nível da injunção moral utópica, Marx a princípio tratou do assunto sob a perspectiva de uma crítica filosófica da história humana, embora continuasse considerando a posição das mulheres como um índice simbólico do avanço social geral. Especialmente nos escritos do jovem Marx, a mulher se torna uma entidade antropológica, ou categoria ontológica, de tipo altamente abstrato. Já em seu trabalho posterior, “A Sagrada Família”, Marx a diferencia como um fenômeno segundo a época e o lugar.

Coube a Engels sistematizar estas teses em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, declarando a desigualdade dos sexos como um dos primeiros antagonismos dentro da espécie humana.

O sexismo, mostrava Engels, não era universal. Houve um tempo em que a terra era possuída comunalmente, em que a passagem da herança se dava através da mãe, em que o trabalho das mulheres tinha o mesmo valor que o dos homens. Para justificar esta assertiva, Engels analisa o que seria o maior retrocesso feminino, se observado isoladamente, qual seja a herança que, sendo a chave para o exame econômico, foi primeiro de linha materna, mas, com o aumento da riqueza, tornou-se de linha paterna.

Isso fez com que a fidelidade feminina se tornasse essencial e a monogamia fosse irrevogavelmente estabelecida. Se, segundo determina Engels, na família comunística a esposa patriarcal é um servidor público, com a monogamia ela se torna um servidor particular.

A família, tal como a conhecemos, nasceu com a propriedade privada, que também causa “a derrota histórica mundial do sexo feminino”. Dado o poder que essa propriedade confere aos homens que a possuem, dado o fato de que os homens querem transferir essa propriedade a seus filhos varões, o direito de mãe é derrotado. Depois da “derrubada da raça feminina”, “os homens assumiram também o comando da casa; a mulher foi degradada e reduzida à servidão; tornou-se escrava da lascívia e mero instrumento para a produção de filhos[2].

Assim, de acordo com Engels, foi criada a família que sobrevive no capitalismo como uma espécie de escravidão ou servidão. “Ela contém em miniatura todas as contradições que depois se estendem através da sociedade e do Estado”, afirma Engels, interpretando anotações de Marx[3].

Entretanto, embora reconheça expressamente a opressão sobre o gênero feminino como o resultado de uma construção histórica, Engels reduz a questão à capacidade de trabalho da mulher.

Para ele, é a fraqueza psicológica dela a causa primária de sua opressão. Porém, se a inabilidade para o trabalho é causa de seu status inferior, a possibilidade de aquisição desta habilidade trará sua libertação.

Engels, assim, encontra uma solução esquematicamente apropriada para sua análise da origem da opressão feminina. A posição das mulheres, então, no trabalho de Marx e Engels, permanece subsidiária a uma discussão da família, que está por sua vez subordinada como simplesmente uma pré-condição da propriedade privada. A solução deles mantém este tom excessivamente econômico, ou entra no domínio da especulação deslocada.

Mas, por outro lado, há várias vantagens importantes no estudo marxista de Engels sobre o sexismo. Em primeiro lugar, nessa análise as instituições sexistas são explicadas como fenômenos sociais, como fatos no tempo e como uma resposta possível a problemas humanos, e não como um fato natural irrevogável. Não se trata aqui de natureza, nem de homens ou mulheres.

O caráter de um indivíduo é sempre determinado pela função social, pelo conjunto de relacionamentos nos quais ela ou ele é definido. Portanto, a estrutura da família jamais deve ser justificada como dependente de uma “natureza” de que espécie for, masculina ou feminina.

Em segundo lugar, o estudo de Engels da origem da família burguesa abole inteiramente o sentimentalismo protetor que a havia isolado da reforma liberal. A família é uma unidade social em atuação, jamais um decreto eterno. E o que não é “natural”, que não existiu antes, pode não existir no futuro.

Em terceiro lugar, foi a partir da teoria marxista que se elaborou um programa para ação radical. O feminismo liberal concentrava-se na reforma legal: deve haver direitos iguais no casamento e um contrato feito livremente. Os marxistas observavam que essas reformas podiam amenizar, mas não mudavam essencialmente a situação das mulheres, na medida em que permanecesse a economia do casamento.

O contrato livre de mulheres liberadas será tão livre quanto o contrato livre que o operário faz com seu patrão.

Dado o fato de que ele deve comer para viver, dado o fato de que o empregador possui os meios de produção, o trabalhador dificilmente estará em condições de barganhar. Ele está sob coerção, o que torna qualquer liberdade ilusória. A mulher também não tem meios autônomos de manter-se. Ela não tem propriedade e está em extrema desvantagem no mercado de trabalho. Tem de se casar para viver. Nenhum contrato feito em tal situação poderia ser livre.

O marxismo propunha uma estratégia alternativa; as feministas podem voltar-se das estreitas preocupações com voto e casamento para a revolução socialista. Eliminado o capitalismo, a opressão das mulheres desaparecerá.

Bebel, discípulo de Engels, tentou fornecer uma visão programática da opressão da mulher como tal, não simplesmente como um subproduto da evolução da família e da propriedade privada, embora continuasse identificando na inferioridade física a responsável pela subordinação do gênero feminino:

“Desde o início dos tempos, a opressão foi o destino comum da mulher e do operário… A mulher foi o primeiro ser humano que provou o gosto da escravidão, tendo sido um escravo antes de existir a escravidão”[4].

Bebel se empenhava em convencer seus companheiros social-democratas, hostis às mulheres trabalhadoras, a compreender que deveria haver plena igualdade para mulheres e homens no Estado socialista. Ele repetia genealogia de Engels do sexismo: A família monogâmica, chefiada pelo homem, advém da propriedade privada. Os defeitos de caráter das mulheres, ressaltados por Bebel, devem-se à sua situação degradada, são herdados geração após geração, mas poderiam ser corrigidos na nova sociedade socialista. Com o alvorecer do socialismo, as mulheres terão direitos trabalhistas iguais aos dos homens, serão educadas e terão participação exatamente como os homens. No novo casamento socialista, as mulheres escolherão os cônjuges livremente e terão direito ao divórcio. Dado que a propriedade privada foi banida, casamentos serão felizes, e o divórcio só será necessário em casos excepcionais.

Bebel, porém, também foi incapaz de ir além da afirmação de que a igualdade sexual era impossível sem o socialismo, lógica esta acompanhada pelo próprio Lênin, o qual indicava o socialismo como condição primeira para a libertação feminina, sem apontar concretamente como transformar a condição da mulher.

Foi por meio de Bebel que o marxismo chegou a Alexandra Kollontai, na Rússia, e Clara Zetkin, na Alemanha.

A primeira seguia a linha de que apenas no socialismo poderiam ser solucionados problemas específicos das mulheres, tais como o cuidado infantil, maternidade e tarefas domésticas. Se a primeira cláusula do socialismo é que toda mulher é um trabalhador, as mulheres, portanto, trabalharão, o que fará com que venham à tona as evidentes contradições entre os papéis profissional e de esposas e mães. O socialismo tratará desses conflitos na vida das mulheres como o fará com outro de qualquer natureza: satisfazendo as necessidades humanas. Caberá às mulheres licença-maternidade com remuneração, acesso à assistência infantil e socialização do trabalho doméstico.

Na Alemanha, Clara Zetkin também via o marxismo como a teoria que daria base para o novo movimento das mulheres. Em seu “O que as mulheres devem a Marx”, defendia o que, a seu ver, era um método rigoroso e seguro para estudar e compreender as lutas femininas. Marx não apenas dava respostas específicas acerca da questão, como também indicava os meios de situar a luta das mulheres na história, à luz de relações sociais gerais. Com isso, as mulheres poderiam compreender sua prática e, assim, desenvolver objetivos e estratégias libertadoras.

Continua a autora que o estudo de Marx da família mostrou que o papel das mulheres não é eterno ou imutável, nem produzido pela lei divina ou moral. Pelo contrário, as estruturas familiares, como quaisquer outras, mudam e desaparecem. Marx demonstrou que o “motor” dessa mudança é a economia. Esses preceitos estão na “Origem da família”, de Engels, mas têm aprofundamento mais técnico em “O Capital”, do próprio Marx, em que ele expõe as invencíveis forças econômicas rompendo a família e, desse modo, impedindo o caminho para a igualdade das mulheres.

Clara Zetkin diz que Marx abrira os olhos das mulheres e lhes dera a certeza de que algo novo e melhor ocorreria. Ao estudar as “pequenas tarefas” das mulheres trabalhadoras, deu-lhes ânimo para exigir reformas específicas nas condições de trabalho, o que coadunava com uma visão de mundo que levaria a mudanças em escala muito maior.

Há um pensamento que sempre gosto de citar: as mulheres, não obstante sejam tratadas como não-sujeitos, atuam permanentemente como sujeitos, seja ratificando o ordenamento social machista, seja solapando-o. As mulheres também fazem, portanto, a história. Se, parafraseando Marx, não a fazem em condições por elas idealizadas, mas em circunstâncias dadas e herdadas do passado, em sororidade poderão romper esse ciclo e, assim, transformar o mundo.

Foto destacada: Clara Zetkin


[1] Charles Fourier, Théorie des Quatre Mouvements, nas “Oeuvres Complètes”, 1841, I, p. 195.
[2] F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1982, p. 120.
[3] F. Engels, ob. Cit, p. 121-22.
[4] A. Bebel, Woman in the past, present and future, Modern Press, London, 1885.

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