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Sobre Globo e racismo: o buraco é mais embaixo

Não há dúvidas de que assistimos a um fato histórico, mas emissora precisa avançar, e muito, no combate ao racismo estrutural da mídia

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Por Paulo Victor Melo*

3 de junho de 2020, certamente, já está marcado na história da televisão brasileira. Naquela noite, o programa Em Pauta, da Globo News, debateu racismo e os atos antirracistas em curso nos Estados Unidos com a presença exclusiva de jornalistas negras e negros.

Comandado por Heraldo Pereira, o programa de uma hora de duração teve as participações de Aline Midlej, Flávia Oliveira, Lilian Ribeiro, Maju Coutinho e Zileide Silva. Em números absolutos e também percentuais, provavelmente tivemos um fato inédito em uma emissora do maior conglomerado de comunicação do país, quiçá da televisão comercial brasileira.

No mesmo dia, anunciou-se ainda que Flávia Oliveira e Zileide Silva passariam a integrar a equipe fixa de comentaristas do programa, sendo, portanto, as duas primeiras mulheres negras a ocupar tal espaço.

Dois dias depois, na sexta-feira, 5 de junho, a íntegra daquele Em Pauta foi reexibida no Globo Repórter, da emissora aberta de televisão do Grupo Globo, que dedicou toda a sua programação à discussão sobre racismo, possibilitando, assim, o acesso a mais pessoas.

Na Globo News, após aquela quarta-feira, diversos programas têm apresentado como convidados pesquisadores e especialistas negros/as para falar sobre temáticas relacionadas à questão racial. Na edição das 18h do Jornal da Globo News desse sábado, 6 de junho, por exemplo, Thiago Amparo, professor de direito da FGV, e Ronilso Pacheco, da University of Columbia, debateram as cotas raciais na educação e no serviço público.

Tanto as jornalistas quanto os professores convidados abordaram efeitos do racismo, desigualdades no mundo do trabalho, privilégios raciais, opressões e políticas afirmativas.

Racismo estrutural

Não há dúvidas de que assistimos, esses dias, a um momento histórico. Porém, num país em que a televisão existe há sete décadas e em que mais de 54% da população é negra, o momento é histórico apenas porque a trajetória das comunicações no Brasil, e do Grupo Globo, é de silenciamento das negras e negros.

Sobre isso, apresento alguns apontamentos.

O primeiro diz respeito ao fato da Globo News colocar várias/os jornalistas negras/os numa mesma “bancada” apenas após sofrer críticas massivas nas redes sociais por ter feito, no dia anterior, um programa que discutiu racismo e atos antirracistas nos Estados Unidos exclusivamente com pessoas brancas.

Não podemos ignorar também que, ainda que nesse momento dê visibilidade a pessoas negras para tratar de racismo, a presença exclusiva de jornalistas e especialistas brancos/as é uma tendência no conjunto dos telejornais tanto da Globo quanto da Globo News, o que pode ser confirmado numa rápida observação nos programas das duas emissoras.

Num livro publicado em 1999, o professor Muniz Sodré, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), já ressaltava que nos meios de comunicação, mais que um elemento discursivo, o racismo é parte de uma estrutura institucional, suscitado por fatores como a tendência à negação do racismo, o recalcamento de aspectos identitários positivos das manifestações de origem negra e indígena, a estigmatização como marca da desqualificação da diferença e a indiferença profissional em questões relacionadas, por exemplo, à discriminação de minorias.

De modo semelhante, num trabalho escrito em 2010, Paulo Vinicius Silva, Wellington Santos e Neli Rocha enfatizam que a mídia de um modo geral, e a televisão em particular, se constroem a partir das referências de branquitude normativa e da estética ariana como forma de hierarquização racial e desvalorização, principalmente, de indígenas e negros.

 

A leitura desses autores nos faz compreender que, sim, é fundamental a presença de mais jornalistas negras e negros apresentando as suas narrativas, os seus discursos e os seus olhares sobre a história, mas que, utilizando a linguagem popular, o buraco é bem mais embaixo.

Nesse sentido, além do necessário aspecto da representação “na tela”, é imprescindível verificar a diversidade racial nos espaços de destaque e direção das emissoras. Assim, cabe perguntar: do total de apresentadoras e apresentadores de telejornais das emissoras da Globo, quantas/os são negras/os? Quantos/as negros e negras ocupam as chefias de redação dos veículos da Globo? Quantos/as negros e negras são diretores e diretoras de jornalismo?

Igualmente, vale o questionamento: por que não há negros e negras na estrutura corporativa do Grupo Globo? Dentre os sete integrantes do Conselho de Administração e os seis ‘Executivos’, não há um negro ou negra.

E sobre o conteúdo, nos programas do Grupo Globo voltados ao público infanto-juvenil qual o percentual de referências negras de beleza? Com quantas produtoras independentes geridas por pessoas negras o Grupo Globo tem parceria para veiculação dos conteúdos por elas produzidos?

Mas, como disse anteriormente, a questão é ainda mais profunda. Importa observar também o posicionamento do grupo de comunicação em assuntos como políticas públicas afirmativas e pautas dos movimentos sociais étnico-raciais.

Então, assim como fez em relação ao posicionamento assumido durante a Ditadura Militar por José Roberto Marinho, quando o Grupo Globo pedirá desculpas públicas pelo livro “Não somos racistas”, escrito por Ali Kamel, quando o mesmo já era diretor de jornalismo?

Não podemos esquecer que, além da posição de chefia do grupo que o autor do livro ocupava, a obra reúne textos produzidos a partir de artigos que ele publicou no jornal O Globo a partir de 2003, quando o país discutia com intensidade a adoção de cotas em universidades públicas. Também para que não olvidemos, o subtítulo do livro de Kamel é “uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor”.

De igual modo, não podemos deixar de indagar: por que as violências do Estado brasileiro contra Amarildo, Rafael Braga e DJ Rennan da Penha não têm o mesmo destaque nas emissoras do Grupo Globo como as violências cometidas pela Polícia dos Estados Unidos contra a população negra?

Caso deseje se afirmar como uma empresa efetivamente comprometida com a diversidade étnico-racial, que transponha a aparência e tente chegar à essência, a Globo precisa avançar em várias questões. Aqui foram colocadas apenas algumas.

Paulo Victor Melo é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

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