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Secom passa longe da Constituição e vira máquina de ataques a desafeto

Ofensas do governo à diretora Petra Costa são, antes de qualquer coisa, um desrespeito à liberdade de expressão

Foto: Marcelo Camargo/ABR
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*Por Gyssele Mendes


Indicado ao Oscar de melhor documentário neste ano, o filme Democracia em Vertigem tem incomodado a Presidência da República. O representante brasileiro no maior prêmio da indústria cinematográfica retrata a ascensão do fascismo no Brasil, que desembocou na eleição do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro. Em uma série de entrevistas nos Estados Unidos para promover o filme, a diretora Petra Costa vem denunciando os ataques aos direitos humanos, o desmonte das políticas ambientais e da rede de proteção aos povos indígenas e o genocídio de jovens negros pela polícia do Rio de Janeiro, a mais letal do mundo.

O descontentamento do governo com a visibilidade dada ao documentário não poderia estar mais evidente. Por meio de tuítes publicados em inglês e em português no dia 3 de fevereiro, a conta oficial da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) compartilhou uma das entrevistas, concedida à Public Broadcasting Service (PBS), e classificou a cineasta como “militante anti-Brasil que vem prejudicando a imagem do Brasil no exterior”. Em uma montagem que carimba todas as falas de Petra como “fake news”, a Secom ignora o seu papel institucional e parte para ataques pessoais.

A publicação mobilizou apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais, que colocaram as hashtags #PetraCostaLiar e #PetraMente nos trending topics. Em uma rápida busca pela rede, lê-se comentários como “Petra é uma estelionatária de fatos verídicos”, “é preciso colocar essa delirante no hospício” e, evidentemente, postagens misóginas como “além de ser rainha das Fakenews, é feia que dói com essa franja de orfanato”.

A postura da Secom também foi bastante criticada. Em resposta, Fabio Wajngarten, chefe da Secretaria, publicou que “um dos DEVERES da comunicação do governo é informar os fatos, sobretudo quando informações falsas são espalhadas no Brasil e no exterior. Porém, o que muitos querem, de fato, é denegrir o país sem direito a réplica por parte dos brasileiros. ISSO SIM É CENSURA!” [grifos do autor do tuíte].

Além de usar um termo racista para mostrar sua insatisfação, Wajngarten está equivocado sobre o papel da Secom e seus limites.

Liberdade de expressão e impessoalidade

Instituída pela Lei nº 6.650/79, a Secom tem como competências as políticas de Comunicação Social, a divulgação de atividades e realizações governamentais e outras ações de comunicação. O site da Secretaria reafirma que está sob sua responsabilidade “garantir a disseminação de informações de interesse público, como direitos e serviços, e também projetos e políticas de governo”. Em qual dessas competências se encaixaria o ataque a uma cidadã brasileira por divergência política? Propositalmente, o governo se utiliza de uma conta pública para se manifestar política e partidariamente, em nome de uma abstrata totalidade dos brasileiros.

De acordo com a advogada Flávia Lefèvre, integrante do Intervozes, as manifestações da Secom são, antes de qualquer coisa, um desrespeito à liberdade de expressão. “Os agentes públicos devem pautar suas condutas pelos princípios constitucionais da Administração Pública, tais como a legalidade, a moralidade, a impessoalidade, o que implica necessariamente em uma atuação que respeite os padrões éticos, de boa­-fé e decoro. Nesse sentido, as manifestações pelo Twitter da Secom, depreciando e atacando a cineasta Petra Costa, antes de qualquer coisa, representam desrespeito à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística e de comunicação, que se constituem como garantias fundamentais expressas no art. 5º, da Constituição Federal”. Tal comportamento, portanto, já revelaria “um desrespeito ao princípio da legalidade e, consequentemente, aos princípios da moralidade e da impessoalidade”, conclui Lefèvre.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, a advogada Mônica Sapucaia Machado segue a mesma posição ao afirmar que os tuítes da Secom violam o artigo 37 da Constituição Federal, que rege a Administração Pública Federal. “[O artigo] deixa claro que a Administração Pública se submete aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e determina ainda que a publicidade dos governos terá caráter educativo, informativo ou de orientação social. Nunca deve se comportar como um instrumento de opinião sobre determinada obra cultural, até porque no Brasil a liberdade de expressão é um pilar constitucional”.

Para o professor titular da Unisinos e Procurador da Justiça aposentado, Lenio Streck, o Ministério Público Federal deveria investigar o caso por desvio de função. “O uso do perfil oficial da Secom para atacar a cineasta deveria ser alvo de investigação do Ministério Público. O governo não pode usar a máquina pública desse modo. Por óbvio quebra o princípio da impessoalidade. O governo não só torce contra a cineasta, como usa da máquina da Secom para desacreditá-la. Caberia uma intervenção do Ministério Público por desvio de função da Secom”, destacou em publicação nas redes sociais.

Na mira do MP

Não é a primeira vez que a Secom de Bolsonaro ocupa o centro das atenções no rol de irregularidades cometidas pelo governo federal. No mês passado, uma reportagem da Folha apurou que o chefe do órgão, Fabio Wajngarten, é sócio majoritário da FW Comunicação, empresa que presta serviços para outras empresas do ramo, entre elas Record e Band, em um caso explícito de conflito de interesses. Sob sua gestão, os recursos públicos destinados a essas emissoras aumentaram expressivamente.

A revista Piauí divulgou nesta semana uma reportagem sobre os gastos públicos em publicidade no primeiro ano do governo Bolsonaro. Ao todo, foram pagos 88,1 milhões de reais, sendo 72% destinado à campanha pela aprovação da reforma da Previdência. Record e SBT, apoiadoras assumidas do governo, lideram a lista das concessionárias beneficiadas. Juntas, receberam 26,8 milhões. A Artplan, também cliente da empresa de Wajngarten, foi a principal agência de publicidade contratada pelo governo. De cada 50 reais investidos na área, 37 foram para a empresa.

Para completar o cenário, nesta terça-feira 4, a Folha teve acesso à cópia da declaração confidencial de informações, preenchida pelo secretário e entregue à Comissão de Ética Pública da Presidência. O documento comprova que ele omitiu a sua relação com empresas pagas pelo governo. O Ministério Público Federal em Brasília já solicitou a abertura de inquérito para investigar as suspeitas de práticas de corrupção passiva, peculato e advocacia administrativa de Wajngarten.

A atuação da Secom, incluindo a do seu chefe, desrespeita garantias fundamentais de uma democracia. O aparato do Estado não pode, nunca, ser usado para outra finalidade senão o interesse público da população. E definitivamente, esse não é o caso.

*Gyssele Mendes é jornalista e integrante do Intervozes.

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