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Um olhar mais aprofundado sobre a saúde das pessoas trans
Como a marginalidade aprofunda as dificuldades em lidar com o próprio corpo, gênero, sexualidade e a convivência ameaçadora com a transfobia
“A marginalidade é mais acolhedora para os corpos trans”, disse-me uma paciente trans durante uma consulta um tempo atrás. Pontuava o quanto era difícil para ela conviver em lugares considerados habituais pelas pessoas cis, como o metrô, o supermercado ou o Correio, por sentir sempre que recebia olhares desrespeitosos, ora de assédio, ora de julgamento, nunca de pertencimento. E que, por outro lado, nas ruas, apesar de não gostar de se prostituir e de querer um emprego formal, ela não se sentia tão julgada. Se sentia mais acolhida e pertencente por estar entre outras pessoas trans.
Essa frase mexeu comigo durante semanas. Como psiquiatra e psicanalista, por vezes há a tendência de se focar na realidade interna do paciente, no seu mundo psíquico e sua singularidade, em detrimento da realidade externa. E isso de forma alguma é um erro ou uma má prática, inclusive talvez seja a coisa mais incrível e bonita da minha profissão. Mas essa paciente me pôs a pensar o quanto, especialmente nessa população específica, fica difícil falar em saúde, física e mental, sem considerar a realidade externa difícil e torturante vivida pelas pessoas trans no dia-a-dia.
Os dados mais recentes são assustadores e escancaram o cenário preocupante dessa população no País. O Brasil lidera o ranking de países onde mais se mata pessoas trans no mundo: a cada 48h, uma pessoa trans é morta. A expectativa de vida dentro dessa comunidade é de 35 anos (menos da metade do restante da população brasileira). Entre as mulheres trans e as travestis, 90% se encontram na prostituição. Ou seja, para os corpos trans, o trabalho informal e a violência são regras, não exceção.
A relação com a cultura e a sociedade, assim como nosso trabalho, são peças importantes da identidade de um ser humano. Frequentemente inclusive nos apresentamos usando essas relações (“prazer, sou amigo de fulano” ou “prazer, meu nome é Bruno e sou psiquiatra”). Pensando nisso, me pergunto: como é desenvolver sua identidade ao mesmo tempo em que se é negado o direito de exercer a profissão que se deseja? Ou quando, ao estar no mesmo recinto que outras pessoas, o que se recebe são olhares de reprovação, assédio e julgamento? Ou quando a todo momento há a preocupação de ser vítima de violência física, independente do ambiente onde se está?
Não bastassem as dificuldades em lidar com o próprio entendimento de seu corpo, seu gênero e sua sexualidade, as pessoas trans ainda têm que conviver com a transfobia, velada ou não, que perpetua uma marginalização social e cultural dessa população em relação ao restante da sociedade. Apesar de algumas iniciativas positivas (como o projeto Transcidadania, criado em 2015 pelo então prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad) e conquistas importantes recentes (como o direito de alterar o nome e o gênero sem necessidade de autorização judicial, laudo médico ou realização de cirurgia), o fato é que a sociedade brasileira ainda é bastante preconceituosa em relação à população trans e falta muito a se percorrer para a diminuição de estigma e violência.
Por isso, ao falarmos em saúde das pessoas trans, não é suficiente que falemos apenas sobre hormonização, cirurgia de redesignação sexual, atendimentos psicológicos/psiquiátricos, etc. Precisamos falar sobre o direito de frequentar qualquer lugar e receber olhares respeitosos. Precisamos falar sobre o direito de terem o emprego que quiserem e não apenas aqueles que a sociedade determina que elas possam ter. Precisamos que as pessoas trans, enfim, saiam da margem.
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