Diversidade

Por que homens gays são impedidos de doar sangue no Brasil e o que deve mudar

Tais mudanças devem ser baseadas em estudos e evidências científicas, afinal, o elo mais frágil de toda essa cadeia é o receptor

Doação de sangue por homens gays. Foto: Reprodução.
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Nos últimos dias, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento de restrições que impediam a doação de sangue por homens que fazem sexo com homens. Esse julgamento foi iniciado em 2017 e foi suspenso quando o ministro Gilmar Mendes pediu vista para analisar o caso. Até o momento desta publicação, a corte havia decidido por 5 votos contrários a tais restrições, contra 1 favorável a sua manutenção, porém o julgamento continua ao longo dessa semana e os ministros ainda podem modificar seus votos até o fim do julgamento.

Essa discussão não é recente. Vários setores da sociedade como juristas, defensores dos direitos humanos e médicos, principalmente infectologistas e hematologistas, estão envolvidos nesse assunto bastante polêmico. E para a elaboração desse artigo houve a colaboração de dois médicos hematologistas, Dr. Guilherme Villar, assistente do Hospital das Clínicas de São Paulo e do Dr. Felipe Melo, médico hemoterapeuta do Hospital das Clínicas e do Hospital Israelita Albert Einstein. Vamos explicar os motivos para tais restrições e traçar um panorama histórico de como chegamos até o momento atual.

Por que é proibido?

O risco de contaminação de HIV pelo receptor caso a bolsa de sangue seja proveniente de um doador portador do vírus é altíssima, sendo esse risco bem maior do que em uma relação anal desprotegida com um portador do vírus que não esteja em tratamento. Para se ter uma ideia, esse risco é de 9 em cada 10 transfusões, se comparado com 1 em cada 72 relações anais com um dos parceiros com a carga viral detectável.

Ser contaminado durante uma transfusão de sangue parece algo inadmissível, não é? É por esse motivo que as regras dos hemocentros para aceitar as bolsas são tão rigorosas. Qualquer pessoa pode comparecer em um hemocentro para se candidatar à doação. Entretanto, ela passará por um processo de triagem na qual pergunta-se sobre doenças pré-existentes, uso de drogas injetáveis e sobre o comportamento sexual. Se o doador for do sexo masculino (e não há nenhuma citação na portaria sobre transgêneros, o que é apontado como uma falha grave) e tiver tido mais do que três parceiras do sexo feminino no último ano, ele é impedido de doar. Porém, se ele teve relação com um único parceiro do sexo masculino nos últimos 12 meses, ele também é impedido de doar. E é exatamente essa última regra que está sendo contestada no STF.

Essa regulamentação era ainda mais rígida. Com o início da pandemia do HIV na década de 80, começaram a haver várias contaminações pelo HIV durante as transfusões. Um exemplo bastante conhecido é do sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, que tinha uma doença chamada hemofilia que demandava transfusões frequentes. Devido a maior incidência do vírus na população de homens que fazem sexo com homens, bem como da maior probabilidade de transmissão durante uma relação anal em comparação com uma relação oral ou vaginal, homens gays eram impedidos de doar sangue pelo resto de suas vidas. Essa regra só mudou em 2004 no Brasil, quando tal impedimento começou a ocorrer apenas em quem teve relação com outro homem no último ano. Para se ter uma ideia de como o assunto é divergente, os Estados Unidos modificaram essa regra somente em 2015.

Como ocorre a avaliação?

É importante explicar um pouco como ocorre e qual o objetivo da triagem nos hemocentros, bem como quais são os testes realizados no sangue doado. Inicialmente é realizado um questionário sobre hábitos de vida e doenças pré-existentes. Como muitas pessoas podem mentir ou omitir alguma informação durante a entrevista, bem como estar doando sangue para ganhos secundários, como testagens de sorologias em sigilo ou atestado de afastamento do trabalho, é realizado um voto secreto da veracidade das informações fornecidas. Isso ajuda a diminuir o fator humano inibindo o doador de dizer a verdade. Há também uma avaliação subjetiva, quando o entrevistador pode detectar possíveis sinais de que o doador possa estar mentindo ou omitindo alguma informação.

O doador é então testado para HIV, sífilis, hepatites B e C, HTLV (um vírus parente do HIV) e para doença de Chagas. Tais testes são imunológicos, ou seja, detectam anticorpos contra tais patógenos. No caso do HIV, existe uma janela imunológica de 3 meses desde o momento da contaminação para que haja a detecção desses anticorpos no sangue do doador. Além disso, é realizado um novo teste que detecta o próprio material genético do vírus nas bolsas doadas. Esse último teste consegue identificar uma contaminação ocorrida com no mínimo 5 dias antes da doação, o que parece algo bastante confiável para identificar uma infecção precoce pelo HIV. 

Porém, existe um conceito chamado “risco residual”, no qual um teste pode se apresentar como negativo mesmo com a presença do vírus no soro. É como se o vírus passasse despercebido no teste. Esse risco residual aumenta consideravelmente quando o sangue é proveniente de uma população na qual a incidência de HIV é bastante elevada, como é o caso dos homens que fazem sexo com homens. Para se ter uma ideia, na cidade de São Paulo essa taxa pode chegar em até 25%. Portanto, esse método de triagem, por mais rigoroso que seja, ainda é sujeito a falhas. E como foi apontado, uma contaminação por um receptor é considerada inadmissível, como me explicaram os hematologistas Felipe e Guilherme.

O assunto é tão polêmico que há divergência inclusive entre os países. A Dinamarca ainda proíbe a doação por homens gays, independente do tempo da última relação. Canadá e Espanha, por exemplo, permitem a doação de sangue por homens que tiveram relação com outros homens antes de 3 meses da doação. Argentina e México não realizam essa triagem, sendo feitos apenas os testes sorológicos e para identificação do vírus no sangue doado. É importante que sejam considerados também fatores como a prevalência do vírus na população de cada país para determinar tais regras. Na África do Sul, por exemplo, há uma elevada incidência de HIV entre mulheres negras.

O que deve mudar?

Pelo andar do julgamento, é provável que o STF derrube tal regra da portaria da ANVISA por considerá-la discriminatória ao impedir um grupo e não os comportamentos individuais como fator de risco para a presença do HIV no sangue.  Talvez seja realmente o momento de  flexibilizar tais regras, tendo em vista a escassez de bolsas disponíveis, o que se agravou ainda mais com a pandemia do coronavírus. Entretanto, tais mudanças devem ser baseadas em estudos e evidências científicas para serem realizadas, afinal, o elo mais frágil de toda essa cadeia não é o indivíduo que está doando e, sim, o receptor que pode se contaminar durante uma transfusão.

Na opinião dos hematologistas consultados, uma mudança que poderia ocorrer seria a redução do tempo de abstinência de 12 para 3 meses, levando em conta a janela imunológica dos testes sorológicos para o HIV realizados no doador, o que aumentaria consideravelmente o número de possíveis doadores. A liberação de doadores com uma relação monogâmica ou que tiveram até três parceiros no último ano, assim como ocorre com doadores heterossexuais, ainda precisa ser validada com estudos, bastante escassos nessa área, principalmente no Brasil.

Ao final desse longo texto, espera-se que tenham compreendido a complexidade do assunto. Caso a mudança na legislação vigente realmente ocorra, que essa transição seja feita de forma consciente e coerente, pautada em embasamento científico e não apenas na opinião pessoal. Só assim poderemos manter a segurança do receptor de sangue, sem discriminar um grupo de possíveis doadores que poderiam aumentar em muito a oferta de hemocomponentes cada vez mais escassa.

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