O ano era 2020, a Covid-19 tingia tudo de morte, e, para sobreviver à barbárie, agarrávamos-nos à esperança na ciência e ao desejo de nutrir uma sociedade mais justa para todos, especialmente para aqueles que já enfrentam uma epidemia de morte desde que foram trazidos ao Brasil em navios negreiros.
Nesse contexto, nasceu a primeira “Semana de Apoio à Amamentação Negra” (SAAN), inspirada na “Black Breastfeeding Week”, criada nos Estados Unidos pelas ativistas Kimberly Seals Allers, Kiddada Green e Anayah Sangodele-Ayoka em 2014. A SAAN acontece todos os anos na última semana de agosto, mês globalmente dedicado à proteção e promoção da amamentação.
Em solo brasileiro, estamos no quinto ano de SAAN, evento organizado por mim e pela pediatra
Tiacuã Fazendeiro, focado na promoção e produção de justiça reprodutiva como estratégia central para erradicar o racismo. Esse caminho estratégico foi indicado desde 1993, na Declaração de Itapecerica da Serra, redigida por diversas mulheres negras e apresentada na Conferência do Cairo (1994), um marco para os direitos humanos.
Por que promover a amamentação entre pessoas negras fomenta a justiça reprodutiva? Porque a justiça reprodutiva une questões de saúde às determinações sociais. Para que exista saúde reprodutiva, é necessário garantir direitos reprodutivos assegurados, como a decisão de ter ou não filhos. Para que essas decisões sejam de fato escolhas, é preciso que os direitos básicos, que sustentam a vida, estejam acessíveis a todos, sem distinção. Ou seja, para que todas as pessoas possam alimentar seus bebês com o próprio leite, é necessário não serem vítimas das violências estruturais do racismo, sexismo e classismo, que encerram vidas negras muito antes de chegarem ao seio.
Com esse propósito, escolhemos “Ser Preta não é só ter pele: Determinação Social da Saúde e Amamentação” como tema para 2024. Nosso objetivo é aprofundar o debate sobre as dificuldades que as pessoas negras enfrentam para amamentar, reconhecendo que essas questões exigem soluções muito maiores do que o manejo das estruturas físicas do corpo humano.
A determinação social da saúde propõe que as condições de vida, trabalho e as relações sociais influenciam diretamente a saúde das pessoas. Para as mulheres negras, amamentar não é apenas uma questão individual ou biológica; é parte de uma luta contra o racismo e as barreiras impostas por um sistema de desigualdades e exploração econômica. Um relatório da ONU aponta que mulheres negras compõem 28,4% da população ativa no Brasil, mas respondem por apenas 16% do rendimento econômico do país. Nesse cenário, amamentar é um desafio que reflete a opressão enfrentada diariamente por essas mulheres. Afinal, amamentar não é de graça, e quem tem pago a maior parte da conta do trabalho de cuidado são as mulheres negras.
Para que amamentar seja apenas sobre nutrir corpos e vínculos, e para que as dificuldades sejam apenas as triviais descritas na literatura médica, ou até mesmo as relacionadas à opressão patriarcal que sobrecarrega e adoece mulheres de todas as raças, as mulheres negras precisam primeiro ousar sobreviver a um sistema que as oprime, subjuga e desumaniza. Isso só se faz com resistência, e resistência só se faz em luta coletiva. Por isso, a Semana de Apoio à Amamentação Negra é uma iniciativa que busca pautar e promover transformações profundas nas condições sociais que perpetuam as injustiças do racismo e do sexismo.
Parece um objetivo ousado? E é.
Desde a escravidão, corpos negros são desumanizados e explorados para garantir a acumulação de riqueza. São marginalizados como protagonistas nas lutas e debates, até mesmo na abolição da escravatura. Corpos de mulheres negras, então! A construção social do racismo no Brasil é parte do desenvolvimento do capitalismo, das relações sociais e de trabalho — uma ferramenta de manutenção da hierarquia social, da concentração de renda e das relações de poder. Isso faz com que nós, mulheres negras, sintamos que a batalha é grande demais, impossível demais, e, sobretudo, não é nosso lugar.
Nesse contexto, precisamos garantir que essas estruturas sejam desmanteladas. Há, inclusive, um projeto de lei (PL 3945/2021) em tramitação na Câmara, apresentado pelas deputadas federais Talíria Petrone (PSOL-RJ), Áurea Carolina (PSOL-MG) e Sâmia Bonfim (PSOL-SP), que pretende oficializar a Semana de Apoio à Amamentação Negra. O projeto segue na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e aguarda parecer da relatora Reginete Bispo (PT-RS). O projeto aguarda. Nós, não. Até porque aguardar não é uma opção para um povo que está em movimento, lutando pela vida desde antes dela existir.
Faremos isso até quando? Até o dia em que pudermos dizer que o maior problema na amamentação em uma família negra é o uso de bico artificial, e não a morte real. É por isso que dizemos, ousadas e vivas como estamos, que a “Semana de Apoio à Amamentação Negra” não é apenas um evento: é um chamado. É para manter viva a chama do desejo que não se dobra às tecnologias de morte que, se não nos matam o corpo, querem nos afogar no banzo, que organizamos a SAAN todos os anos. Para isso, nos expomos, criamos cursos, aceitamos todos os convites para falar sobre o tema.
Eu e Tiacuã esperamos que você ouça este chamado, porque saiba: não existe saúde fora do contexto social, político, econômico e cultural. E se queremos produzir saúde, é necessário compreender e enfrentar as determinações sociais que ceifam vidas antes mesmo do primeiro gole de leite materno. Mais do que compreender, é necessário agir. Este chamado é para te lembrar que operar a transformação social também é sua função. Em coletivo, produziremos muito mais alimento para nutrir o mundo novo que precisamos.