Sampapé

Qual o lugar da “micromobilidade” na cidade?

Com a chegada de patinetes elétricos sem estações e o uso de bicicletas elétricas, surgem novas questões na mobilidade

(Foto: Letícia Sabino)
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Faria Lima, 18 horas, fila na ciclovia. Aguardando abrir o sinal, acumulam-se bicicletas amarelas, laranjas, de outras cores, patinetes elétricos verdes, amarelos, além de skates e outros veículos.

Esta cena se tornou comum, mas parece que estamos em outro mundo. Bem diferente das bordas da cidade, onde a maior parte das pessoas caminham no meio da rua depois de longos trajetos em ônibus biarticulados.

O que são estes novos modos de se deslocar? Quem os acessa e como eles reconfiguram as cidades? Estas são algumas das questões ainda sem respostas, sobre as quais nos propomos a refletir.

Micromobilidade

Micromobilidade é um termo que está sendo amplamente usado pelas startups que prestam o serviço de aluguel de patinetes e bicicletas elétricas para identificar, e vender, o que oferecem e promovem. Mas afinal o que é? Na verdade, o termo foi usado pela primeira vez pelo empresário tech Horace Dediu no Tech Festival em Copenhagem no final de 2017 – ou seja, pouco mais de um ano atrás.

Para ele, micromobilidade define uma categoria de novos veículos que estão sendo introduzidos nas cidades e devem, principalmente, atender a três condições: pesar menos que  500kg, ser acionado por um motor elétrico e ser utilizado principalmente como transporte.

Em grande parte, este termo estava associado à tendência de produção de carros elétricos individuais como resposta da indústria automobilística ao modelo de cidade que não comporta mais veículos pesados, poluentes, barulhentos e grandes.

Mas logo surgiram outras respostas mais baratas e mais rápidas: patinetes e bicicletas elétricas compartilhadas. Tal inovação, transforma modos historicamente ativos, que por exigirem força humana são leves e eficientes, e acrescentam motores elétricos a bateria para permitir se deslocar mais rápido e chegar mais longe.

Um dos argumentos que justifica o desenvolvimento e prevê o crescimento dos veículos individuais contemplados pela “micromobilidade” é o de que distâncias curtas devem ser predominantemente percorridas com veículos pequenos e longas distâncias com veículos maiores. Sugerindo, por exemplo, que rotas dentro dos bairros não devem ser feitas de ônibus, que são grandes e pesados. Justamente por esta perspectiva, essa categoria se posiciona também como uma solução para a “última milha”.

Ou seja, a ponta final ou inicial de um trajeto, que seria antes de chegar ou saindo de um transporte de massa, trechos para os quais não há uma demanda coletiva, porque cada indivíduo realiza um trajeto único e diferente.

Vale lembrar que, nas cidades brasileiras, estes deslocamentos são em sua maior parte realizados a pé – algumas vezes distâncias adequadas, outras nem tanto, mas quase em sua totalidade em condições precarias.

A Micromobilidade e a Mobilidade Urbana

O nome “micromobilidade” confunde, não apenas por ter “mobilidade” no nome, mas também porque muitas novas startups se promovem como solução de mobilidade urbana para grandes cidades. Por isso vale lembrar que os novos veículos que compõem a chamada micromobilidade agregam novas opções de modo de transporte, e não de mobilidade.

Isso porque mobilidade urbana não se resume ao transporte. Mobilidade urbana é sobre as condições dos deslocamentos, ou seja, abarca a relação entre a estrutura, a distribuição do território urbano e as pessoas, enquanto transporte tem foco nos modos – ou veículos. A Política Nacional de Mobilidade Urbana, publicada em 2012, é essencial para começar a promover esta diferenciação também nas políticas públicas.

Ela também determina que a prioridade aos distintos modos de se deslocar deve seguir uma hierarquia. No topo está o deslocamento a pé, junto com a bicicleta e outros modos ativos, logo os transportes coletivos públicos, o transporte de carga e, por fim, os modos motorizados individuais (carros e motocicletas).

Esta hierarquização corresponde ao respeito e estímulo aos deslocamentos que são melhores para o coletivo. No entanto, a maior parte das cidades brasileiras não está configurada de modo a respeitar essa hierarquia – e faz justamente ao contrário. Em São Paulo, por exemplo, 80% do espaço das ruas é destinado aos carros.

Na execução da lei ainda não havia “micromobilidade” como um modo de transporte, e por isso a pergunta: onde este modo deve entrar na pirâmide da mobilidade? Algumas características e seu uso podem nos dar pistas.

Não poluentes, mas também não ativos

Os veículos da micromobilidade em geral usam a infraestrutura da mobilidade ativa – calçadas e ciclovias, predominantemente. Entretanto, essa estrutura ainda é muito escassa e deficiente, justamente porque os carros são priorizados na divisão de espaço.

Por outro lado, é preciso fazer uma ressalva: bicicletas e patinetes elétricos não são modos ativos de deslocamento. Eles se aproximam ao modos ativos pelo porte, distâncias percorridas, por não produzir poluição ambiental e sonora e pela maneira como promovem a conexão com outros modos de transporte.

Mas se afastam deles ao não usarem energia do usuário, e atingirem velocidades mais elevadas, diminuindo a interação com o espaço urbano e outras pessoas.

Essas características acabam alimentando o debate sobre a infraestrutura mais adequada para o tráfego desses tipos de veículos, regulamentação e políticas públicas. No entanto vale lembrar que, ainda que tecnicamente esses veículos não se enquadrem na categoria “modos ativos”, quem tenta utilizá-los no mesmo espaço onde circulam carros, motos e ônibus está praticamente tão exposto a sofrer colisões ou atropelamentos quanto quem se desloca com bicicletas, skates e patinetes convencionais e a pé. Por esse motivo, o uso de calçadas e ciclovias por bicicletas e patinetes elétricos está diretamente associado à insegurança no trânsito das cidades.

Quais cidades têm espaço para a “micromobilidade”?

Outra reflexão, que cabe à mobilidade urbana, sobre a inserção da micromobilidade na cidade é que se são veículos para trajetos intra bairros ou para a “última milha”, só funcionam como solução em cidades onde há uso excessivo de carros para curtíssimas distâncias, seja qual for a razão.

Ou onde o acesso ao transporte público não é perto de grande parte das residências, resultado de cidades que não são bem distribuídas e não são densas o suficiente para que a população more a curtas distâncias de transportes de massa.

Uma medida que ajuda a perceber isso é a “People Near Transit”, métrica que mede a porcentagem de pessoas que moram a menos de 1 km de uma estação de transporte público de massa em uma cidade. Em cidades em que o acesso é alto e que distâncias curtas não são percorridas em automóveis não há incentivos suficientes para se usar veículos de “micromobilidade”.

É por isso, talvez, que cidades como Londres e Amsterdam não contam com patinetes elétricos, enquanto estas soluções surgiram em cidades como Los Angeles e têm grande adesão em cidades que tiveram reestruturações modernistas, com largas avenidas, grandes quadras e redistribuição dos serviços em distâncias pensadas para deslocamentos por carro, como Paris e Berlim.

Neste sentido, vale ressaltar que a rápida adesão dos patinetes elétricos em São Paulo não se dá por acaso. Historicamente o desenvolvimento das estruturas viárias e distribuição urbana teve como base o transporte sobre pneus. O sucesso da micromobilidade é consequência deste modelo.

“Micromobilidade”, uma nova opção?

Por um lado, ter diversas opções de modos de deslocamento é uma forma de garantir mais acesso e melhor qualidade na experiência de se deslocar nas cidades. Um dos efeitos mais positivos dos veículos da micromobilidade é a possibilidade de substituir as viagens curtas que eram feitas de automóveis. Já pensou se metade dos motoristas paulistanos que usam seus carros para viagens de até 3km de distância (e representam 25% das viagens de carro na cidade) passassem a usar bicicletas ou patinetes elétricos nesses pequenos trajetos?

De qualquer maneira, para que a migração modal – direcionada a esses veículos emergentes, caminhada ou bicicleta convencional – seja feita de forma segura, é preciso que o poder público invista pesadamente em reequilibrar o espaço das ruas e garantir melhores condições de segurança para modos ativos e não-poluentes de deslocamento. Sem perder de vista a prioridade absoluta da caminhada.

Por outro lado, não se pode perder de vista que o alcance destes novos veículos ainda é pífio em relação à dimensão do território da cidade, além de o custo ser excludente. Desde uma perspectiva de gênero, a micromobilidade poderia prover mais possibilidades de acesso de mulheres à última milha, mitigando a sensação de medo que as afasta de muitos trajetos e horários de circulação.

Mas tanto a cobertura quanto o próprio custo dessas soluções nas cidades brasileiras ainda restringem seu uso a uma pequena camada da população. Nos locais onde os sistemas de compartilhamento de bicicletas e patinetes elétricos chegam, quem tem condições de custear o serviço muitas vezes o faz para percorrer distâncias curtas em uma velocidade maior que o ônibus e com mais conforto, por exemplo.

Em algumas avenidas no horário de pico os ônibus ficam cheios e chegam a circular até a 4,5 km/h – velocidade média de uma pessoa a pé – enquanto os patinetes elétricos são individuais e podem chegar a 30 km/h. Evidenciando, assim, outros problemas de mobilidade urbana, como a falta de priorização do transporte coletivo.

Polêmicas à parte, uma coisa é certa: em nossas cidades há espaço demais para os carros e todos sofremos com as consequências disso. Por isso, quanto mais possibilidades de tirar carros das ruas, melhor para todo mundo. A questão que permanece é se os veículos que compõem a “nova onda” da micromobilidade, em vez de disputar o parco espaço da infraestrutura para a mobilidade ativa, ajudarão a reivindicar uma melhor distribuição do espaço viário.

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