Quadrinsta
Chico Alencar: “Desconfio muito de político sem história”
O deputado federal critica as “novidades” João Doria e Luciano Huck e diz que Temer é servil aos interesses privados para se livrar das investigações


A eloquência comum aos legisladores no período anterior à ditadura e que passa ao largo do desértico parlamento atual é característica do deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ), quadro de oposição atuante ao governo federal. E a crítica afiada aos rumos do País pós-impeachment dá o tom da Quadrinstrevista deste mês.
Um dos alvos do parlamentar são os marinheiros de primeira viagem que aproveitam a nau sem rumo para buscar protagonismo na história do Brasil, em especial João Doria e Luciano Huck: “Eles pertencem ao ambiente da elite econômica financeira e agora querem estar imbricados na mesma casta política, com um discurso falso e mentiroso de que não são políticos”.
Seus pares na Câmara, que livraram o presidente Michel Temer de duas consistentes denúncias da Procuradoria Geral da República, também são foco. “O condomínio do poder, negando todas as evidências, não quer autorizar uma simples investigação de um processo penal onde Temer teria todas as possibilidades de se defender”, vocifera Chico.
Pré-candidato do partido socialista ao Senado, o ex-militante do PT lembra sua saída da legenda e os episódios de corrupção que se sucederam. Considera exagerado, porém, o ímpeto punitivista da Justiça brasileira. “Muita gente do PT que está denunciada ou incriminada não tinha objetivo de enriquecimento patrimonial e pessoal, mas errar duas vezes é grave e afeta toda a esquerda”. No recente episódio a envolver um suposto “afago” a Aécio Neves, Alencar ressalta a distorção da crítica: “Não houve nenhum gesto de submissão, e sim de brincadeira”.
Quadrinsta: O senhor completa no próximo ano 16 temporadas na Câmara lidando com figuras como Eduardo Cunha, Rodrigo Maia e Carlos Marun, e, caso eleito senador, terá de dividir plenário por oito anos provavelmente com Renan Calheiros, Romero Jucá e Fernando Collor. Seu médico liberou esse novo período de tortura?
Chico Alencar: Não esquecendo Paulo Maluf, Jair Bolsonaro… Como sou safenado, mas imune à safadeza, estou fazendo a revisão dos cinco anos dos meus enxertos cardíacos e até aqui está tudo bem. Mas a vida é um risco. Guimarães Rosa dizia que viver é muito perigoso e vou para aquele espaço que o saudosíssimo Plínio de Arruda Sampaio chamava de valhacouto de oligarcas, caso seja de fato candidato a senador, e caso mais improvável venha a vencer a eleição no Rio de Janeiro, bagunçar o couro dos contentes.
Quero ser uma espécie de antissenador, dentro da concepção tradicional do que é o cargo, o equilíbrio, a cabeça branca, essa já tenho, mas dentro dela as ideias mais conservadoras e isso eu não quero. Desejo estar no Senado para questioná-lo na medida em que talvez para o Brasil seja melhor uma assembleia unicameral e para isso é necessário uma constituinte exclusiva para a reforma política. Enfim, vamos lá para combater, estar dentro do poder para recusá-lo.
Q – No início do ano, o senhor classificou como brincadeira um suposto beijo que deu na mão de Aécio Neves durante um jantar, mas uma situação não foi esclarecida: o senador tucano tem as mãos sujas?
CA – Quando Aécio chegou ao evento, bem tarde, devia estar em outras tertúlias. Fiz uma saudação, não houve nenhum gesto de submissão, de reverência, e sim de brincadeira: majestade, só elas que chegam a essa hora, mas reconheço que nem devia ter feito isso porque se prestou a essa interpretação maldosa. Agora, curiosamente nunca vi nenhum registro fotográfico de qualquer gesto de servilismo, ao contrário de outros que foram abraçar e até pedir apoio de Maluf.
O PSOL, ao lado a Rede, é signatário de uma ação para cassação do mandato do Aécio, que fiz questão de assinar, e foi para o Conselho de Ética do Senado, mas infelizmente engavetaram. Portanto não há nenhuma possibilidade de se tirar dali aliança política, mas foi um erro. No dia seguinte, fiz uma mensagem reconhecendo que devia ter ido embora mais cedo, porque ali era uma roda e ele tentava me convencer da importância do financiamento empresarial para as campanhas.
Aécio tem as mãos muito sujas, mas sinceramente não imaginava tanto. E não sou eu que vou limpar aquelas mãos, muito menos com a minha boca. Quem tem de limpar é a polícia. O Senado deixou de fazer sua parte quando revogou uma decisão correta de uma turma do STF, pois há um acordão de proteção da casta política.
Q – A Câmara livrou Temer provisoriamente de duas denúncias por corrupção, obstrução à justiça e organização criminosa com provas contundentes. Quando o Congresso pedirá ao Vaticano a beatificação do presidente?
CA – No que depender de mim, que sou cristão, ecumênico e de formação católica, nunca, porque seria pedir ao Papa um gesto herético e, sobretudo o Francisco não é chegado a isso. Ao contrário. O papa se recusou a vir ao Brasil, como até anunciara, na celebração dos 300 anos da negra Aparecida, em 12 de outubro, exatamente para evitar qualquer possibilidade de contato com Michel Temer, que pediu audiência e foi recusada.
O condomínio do poder, negando todas as evidências, não quer autorizar uma simples investigação de um processo penal onde Temer teria todas as possibilidades de se defender. O relatório do tucano Bonifácio de Andrada é o relatório do descendente do Patriarca, no caso dele, da dependência. Ele está agarrado como parte expressiva do tucanato à coalizão de denunciados, privatistas máximos, clientelistas e fisiológicos que é o governo do presidente postiço Temer.
Aquele relatório aprovado pelo plenário da Câmara é mais uma certidão de nada consta do que uma análise técnica, como o relator alardeou, dos inúmeros indícios e provas de que Temer cometeu corrupção passiva, formação de quadrilha e obstrução à justiça, e Moreira Franco e Eliseu Padilha, corrupção passiva, como está denunciado em 245 páginas do relatório do ex-procurador-geral da República.
Eles desconhecem tudo isso ao preço que se sabe, que inclui até o fim dos limites à contenção do trabalho escravo, perdão de dívidas ambientais de ruralistas, alongamento de dívidas de deputados, senadores e empresários com o novo Refis e as emendas parlamentares. É uma vergonha essa quadra do Brasil, então não há papa que possa tirar esses pecados, que são veniais e mortais.
Q – O presidente tornou-se escravo do projeto ilegítimo que o levou ao poder?
CA – Sem dúvida, só que é uma escravidão voluntária, desejada, que o liberta das investigações, um servilismo escolhido no qual ele fica bastante à vontade porque a história política de Michel Temer sempre teve algumas características: habilidade para negociar, ninguém é presidente do PMDB, esse partido da moral homogênea, por 15 anos impunemente. Ele lida bem com clientelismo, com o fisiologismo. Seu aumento de patrimônio foi muito expressivo. Michelzinho é um herdeiro abençoado, pelo que andei lendo.
Michel Temer transita no mundo da política de negócios, da conciliação na cúpula, na alta burguesia, com muita competência, tem de se reconhecer. Só que o povo não reconhece isso. Ele é o presidente mais impopular desde que reconquistamos a vida da democracia liberal burguesa, com eleições presidenciais diretas.
Q – A popularidade é um habeas corpus vitalício no Brasil?
CA – Não devia ser, mas é um elemento que conta e nesse aspecto acho até compreensível. Se o indivíduo consegue com tal simpatia popular fazer com que aqueles que têm admiração por ele relevem eventuais, supostas ou comprovadas, falhas é sinal de que a popularidade é um aval importante, não absoluto, assim como o voto popular que é o grande elemento de avaliação.
Por isso acho que a figura mais importante dos poderes da República é aquela que é a origem de todo poder, que é sua excelência cidadão e cidadã, que a cada período ganha o poder fundante de uma República, que é o de escolher governantes e legisladores. O melhor instrumento de condenação e absolvição que existe é o voto.
Q – Como confiar em um Parlamento onde os termos “vossa excelência” e “safado” aparecem constantemente na mesma frase?
CA – Sabendo que ali é o reino da hipocrisia e da contradição, onde o formalismo cede rapidamente lugar ao que é essencial, que é o conteúdo da avaliação de uns sobre os outros, e em geral todos têm razão. O povo não confia, o Parlamento é uma das instituições mais desacreditadas da nossa República exatamente porque sabem que os parlamentares fingem. Alguém já disse que até briga no Parlamento é combinada e o inimigo do dia pode estar jantando à noite e fazendo negociatas.
Temos de renovar radicalmente o Parlamento, mas, para isso, a consciência da população é fundamental, o voto é a arma principal para que o Congresso não seja o espaço do cinismo. Na hora de decidir iniciativas, impeachment, Medidas Provisórias… O que vale predominantemente é o interesse econômico. Há muitos parlamentares que se vendem a quem financiou suas campanhas, aos grandes lobbies, aos grandes cartéis.
A votação da lei anual mais importante, que é a Lei Orçamentária, também obedece a interesses: de um lado, da reprodução dos mandatos para alimentar os currais eleitorais e, de outro, dos interesses das grandes corporações. Por isso, mais que bancadas partidárias, temos a bancada do cimento, isto é, das empreiteiras; do boi, ou seja, dos frigoríficos; da bala, indústria armamentista; da bíblia fundamentalista, não libertadora; dos bancos. Enfim, tudo isso mostra que as maiorias sociais no Brasil ainda não são maiorias políticas.
Q – Alguns quadros históricos da esquerda brasileira posicionaram-se favoráveis ao golpe como Miro Teixeira, Cristovam Buarque, entre outros. Quem o decepcionou mais nesse processo de desmonte do estado democrático?
CA – Todo mundo que votou no golpe parlamentar do impeachment de Dilma, e digo que era um governo no qual nós víamos várias deficiências, como a linha ortodoxa neoliberal e financista rentista do seu ministro da Fazenda, Joaquim Levy, o fato de Geddel Vieira Lima, indigitado do bunker dos 51 milhões de reais, ser diretor de Pessoa Jurídica da Caixa Econômica Federal.
Mas nós, do PSOL, jamais confundimos crítica com deposição e oposição com conspiração. Marina Silva, você não citou talvez por não ser parlamentar, também apoiou o impeachment e todos os outros, de alguma forma, indicavam essa posição, portanto não me surpreende. Achei que podiam ter dado um passo melhor para suas próprias biografias, é bom lembrar que Marina apoiou Aécio no segundo turno contra Dilma expressando uma concepção.
Agora estão todos com a cara no chão, não só eles, como os milhões que foram às ruas protestando contra a corrupção, mas com a camisa da corrupta CBF e batendo panela, que para eles nunca esteve vazia. Poderiam agora, por dever de consciência e coerência, fazer o mesmo, mas preferem silenciar, o silêncio dos envergonhados.
Q – O PT de 2005, quando você deixou o partido, e de 2015 é o primeiro caso de gêmeos univitelinos gerados em épocas distintas?
Fico muito impressionado e triste porque imaginava, embora o PT tenha nos punido quando nos recusamos a votar a favor da reforma da previdência naquela época, que haveria alguma autocrítica, mas não, o partido foi se aquietando, acomodando todo aquele trauma do chamado “mensalão” e dali a pouco veio o “petrolão”, situações similares que têm como gênese a promiscuidade público-privada, o acordo com grandes grupos empresariais, sobretudo para financiar campanhas.
Acredito que muita gente do PT que está denunciada ou incriminada não tinha objetivo de enriquecimento patrimonial e pessoal, mas não achamos que o “rouba, mas faz” pode ser substituído pelo “rouba, mas é pela causa” e nem pelo atualíssimo “rouba, mas atende aos interesses do mercado”. Errar duas vezes é muito grave e isso afeta a esquerda como um todo. Estamos sofrendo uma derrota estratégica no Brasil e no mundo, temos de reconhecer, em cada lugar com suas características.
Q – Luciano Huck e João Doria, apresentadores de televisão, aparecem como alternativas à sucessão presidencial. O brasileiro virou espectador de um show midiático de pirotecnias?
Desconfio muito de político sem história, aquele que declara que nunca esteve na política, que será gestor. É bom lembrar que João Doria cresceu, inclusive em termos de patrimoniais, às custas de muitos negócios com o Estado brasileiro. Só um exemplo, Luciano Huck vendeu para os irmãos Batista a sua mansão paradisíaca em Angra dos Reis. Eles pertencem ao ambiente da elite econômica financeira e agora querem estar imbricados na mesma casta política, com um discurso falso e mentiroso de que não são políticos.
A partir do momento em que você se filia a um partido, ou mesmo antes disso, em que tem pretensões a interferir na política, você está sendo político, o que é uma virtude. Defeituoso é querer negar isso. O Luciano Huck pode não ter ainda uma escolha partidária específica, mas está totalmente engajado na política quando fala que quer ajudar os pobres ou já ajuda por meio do seu programa televisivo. Questiono muito o fato de ele se apresentar como novidade.
A coisa mais velha que tem é o sujeito disfarçar sua visão política negando que ela exista para suposta e enganosamente posar de neutro e, pior ainda, de salvacionista individual. Política que presta é gregária, associativa, com perspectiva de classe, com posição, lado definido como Doria tem. Ele só não tem o lado de São Paulo, que é uma cidade que visita de vez em quando.
Q – Falando em João Doria, o cachorro de Michel Temer comeria a ração do prefeito de São Paulo?
CA – Acho difícil, pois é um cachorro bem nutrido, que frequenta os ambientes de dentro da casa, embora conste que quando dona Marcela, primeira-dama recatada e do lar, ouviu de Temer a pergunta onde devia alimentar o Thor, ela respondeu “fora, Temer”. Certamente um cachorro assim, com tanto pedigree, não vai comer aquela ração que Doria inventou e foi mais uma bola fora, ofensiva aos pobres de São Paulo e do Brasil.
Q – Os golpistas que derrubaram Dilma e fizeram um governo só de homens, agora atacam Maria da Penha e a Princesa Isabel. O que levou o país democrático dar lugar ao Brasil misógino e paternalista?
CA – O fato de o Brasil misógino, paternalista, patriarcal, escravocrata ainda não ter acabado de vez. Na verdade, essa gente sempre esteve ali nas sombras do poder. O PMDB é um partido cuja vocação e programa para o Brasil é estar no poder. Eles apoiaram, desde a democratização, o Sarney, que logo se tornou seu filiado e prócer principal, apoiaram mais timidamente o Collor, que durou pouco. Depois foram para o lado do Itamar [Franco], que se filiou ao PMDB, apoiaram o FHC, o Lula, a Dilma e agora afinal chegou ao poder.
Como a direita no Brasil perdeu o pudor, eles se arvoram a essa postura de exterminar direitos e, se não houvesse resistência, voltaríamos aos tempos monárquicos. Uma monarquia parlamentar, mas que mantém o Brasil nos quadros do latifúndio, da economia primária exportadora, da dependência externa e da escravidão.
Q – O nosso seguidor Zé Moreira Neto, de Bauru-SP, faz a última pergunta: qual é o melhor caminho para uma reforma política que garanta a democracia e a vontade da maioria e que garanta, também, a participação das minorias e “excluídos” do jogo político?
CA – Zé, o caminho é o que Bauru nos deu com o delicioso sanduíche, ou seja, a criatividade, a inventividade, aquilo que vem com a seiva e a vida do trabalho cotidiano. Reforma política sem participação popular nada vai mudar. O que tivemos agora foram novas modificações tópicas na lei eleitoral para reproduzir o condomínio do poder, sobretudo. Está longe de ser uma reforma. O que defendemos é uma ampla discussão sobre o novo modelo político que combine a democracia representativa com a democracia direta e participativa.
A Constituição garante, mas isso tem de culminar numa Assembleia Constituinte exclusiva para a reforma política que recolha todas essas propostas. Lá no Congresso Nacional há uma iniciativa popular de lei engavetada, mas com número e tramitando, em tese, liderada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que foi elaborada três anos atrás com quase um milhão de assinaturas e modifica bastante nosso sistema eleitoral, o financiamento partidário, garante uma qualidade mais ideológica aos partidos que hoje são, com raras exceções, marcas de fantasia.
O trabalhista não defende o trabalhador, tem partido que se diz socialista e é capitalista, outro que se diz progressista e é ultraconservador. Tem partido social-democrata que não sabe sequer o que é a social-democracia das origens. Enfim, é muito embuste e os partidos estão degradados. Uma reforma política altera tudo isso e coloca no cenário as organizações partidárias em igualdade de condições para disputa. Por enquanto, eles querem a reprodução mais do mesmo, mas sem participação popular, nada vai avançar.
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