Psicodelicamente

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‘Xamãs se transformavam em onça’, diz ancião da ayahuasca que vive na Amazônia peruana

Na alta selva amazônica peruana, um clã de curandeiros mantém viva a cultura xamânica ligada a ayahuasca

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Na alta selva amazônica peruana, a apenas uma hora de Tarapoto, no estado de San Martin, reside o patriarca Aquilino Chujandama, de 79 anos, ancião de um clã de curandeiros, herdeiros de uma linhagem que remonta aos seus tataravós.

“Meus antepassados, meu avô e meu pai, todos foram curandeiros”, conta o velho xamã, enfatizando que a prática é intrínseca à sua cultura. Ao lado de seu filho, Artidoro, de 50 anos, Aquilino coordena as atividades de um centro onde a tradição da medicina tradicional amazônica é preservada.

Para encontrar o ancião, que é um dos mais antigos curandeiros do Peru, viajei até a Chazuta, um pequeno vilarejo, com aproximadamente 10 mil habitantes, escondido entre a selva amazônica e os Andes.

De Tarapoto até a vila, foram cerca de duas horas, sacolejando em uma van lotada, por uma estrada cercada por montanhas amazônicas e às margens do rio Huallaca.

Depois, uma parada rápida no centro da cidade para um café de manhã para lá de exótico: caldo de añuje (um roedor amazônico, semelhante à cotia). Logo em seguida, hora de encarar mais uns 20 minutos de viagem.

Na reta final ‘estrada’ não define com precisão o caminho percorrido, um circuito sinuoso e acidentado com trechos aparentemente impossíveis de se atravessar, ainda mais a bordo de um mototaxi, uma pequena moto, com uma cabine adaptada na parte traseira, principal meio de transporte na Amazônia peruana.

No final, chega-se a um centro de medicina tradicional, chamado Urku Runa, que há décadas existe em Chazuta. Os anfitriões do lugar me explicam que o nome é uma palavra do quéchua, idioma da antiga civilização inca, da qual a família Chujandama é descendente. Significa algo como ‘homem da montanha’, traduz o curandeiro.

Lá, entre plantas medicinais de todos os tipos, o simpático senhor Aquilino Chujandama dirige, junto com o filho, cerimônias de ayahuasca, bebida psicodélica usada há milhares de anos pelos povos indígenas amazônicos.

Considerada por indígenas uma “planta professora” capaz de curar ou transformar a vida de uma pessoa, a ayahuasca no Peru é reconhecida como patrimônio cultural desde 2008.

Berço do xamanismo amazônico

O ancião Aquilino Chujandama conta que desde a conquista espanhola grupos indígenas se espalharam pela selva, disseminando as práticas do xamanismo por diferentes regiões. Criada a partir desse fluxo migratório, a pequena Chazuta é considerada uma espécie de berço de grandes curandeiros indígenas.

“Um dos primeiros foi Cipriano, irmão de meu tataravô”. Segundo Chujandama, seu parente foi um xamã muito poderoso. “Ele se transformava em onça e saia para caçar”. O relato do antigo curandeiro é logo confirmado pelo filho, Artidoro, que acompanha a entrevista. “É uma história real.”

Segundo Artidoro, o xamã Cipriano, quando morreu, reencarnou em uma onça e se tornou um guardião do local “Durante cerimônias de ayahuasca muito intensas podemos ouvi-lo na mata ao redor e há visitantes que relatam visões com o animal em suas experiências, sem conhecer nada sobre essa história”, garante ele.

Chujandama teve nove filhos, mas só Artidoro, decidiu seguir o mesmo caminho. “Quando o meu pai se for, alguém tem que tomar as rédeas, esse trabalho não pode acabar aqui.”

Imersão na tradição amazônica

No Urku Runa, os rituais seguem o método típico da região. Antes de consumir a ayahuasca, os participantes passam por um rigoroso processo de purificação, envolvendo o uso de plantas purgativas, uma dieta específica e abstinência sexual.

O pacote básico, de três dias, oferecido pelo centro inclui a purga, uma cerimônia com ayahuasca e banhos de plantas medicinais. Mas os períodos de imersão na tradição ancestral amazônica podem variar entre dias, semanas ou meses.

A prática da família Chujandama destaca-se por preservar os ensinamentos passados de geração em geração, mantendo viva a conexão com as raízes culturais e espirituais. Dirigido por xamãs experientes, o centro é um refúgio seguro para aqueles em busca não apenas de cura física, mas também de uma experiência profunda, guiada pelas tradições milenares da medicina amazônica.

Globalização da ayahuasca e impactos na selva amazônica

A visita a família de xamãs em Chazuta é parte de uma investigação jornalística que venho realizando desde 2022, a partir de uma série de viagens para a Amazônia peruana em busca dos anciões da ayahuasca. A íntegra deste material será publicada em um livro-reportagem que deve ser lançado ainda este ano pela editora Elefante.

E, ao longo do ano, neste blog da Psicodelicamente, trarei também outras reportagens e entrevistas sobre a ancestralidade do uso da ayahuasca e de outras plantas dentro do contexto xamânico amazônico, e de como essas tradições são preservadas e protegidas dentro de territórios indígenas na selva peruana.
Todas as matérias estão entrelaçadas por esse recorte comum, ainda pouco explorado no atual cenário de retomada das pesquisas científicas com substâncias psicodélicas: a globalização da ayahuasca e os impactos na selva amazônica.

A possível medicalização da ayahuasca e sua utilização em contextos terapêuticos e religiosos em nível global, bem como os impactos desse consumo em diferentes regiões da Amazônia, focos do chamado turismo xamânico ou psicodélico, impõem questões complexas que demandam inúmeras reflexões. Um cenário cada vez mais desafiador, sobretudo para a proteção da biodiversidade amazônica e o conhecimento tradicional indígena.

*O jornalista Carlos Minuano viajou a Chazuta na Amazônia Peruana com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center e do Fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas da Fundação Gabo e Open Society Foundations.

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