Psicodelicamente

Revista digital independente de jornalismo psicodélico, criada pelo jornalista Carlos Minuano

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Tensão e aplausos marcam congresso de psicodélicos no Rio

O evento terminou sob críticas de baixa representatividade de pessoas pretas e indígenas, mas foi elogiado por ampliar temas para além da farmacologia

Tensão e aplausos marcam congresso de psicodélicos no Rio
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A segunda edição do Congresso Brasileiro sobre Psicodélicos, realizada nos dias 8 e 9 de novembro no Rio de Janeiro, terminou em um clima paradoxal. Parte do público criticou a baixa representatividade de pessoas pretas e indígenas, além de apontar problemas de organização e acesso aos espaços de debate, gerando tensão ao fim do evento. Apesar das críticas, o congresso, organizado pela APB (Associação Psicodélica do Brasil), foi elogiado pela entrada gratuita e pela abordagem de temas que transcendem a perspectiva predominantemente farmacológica.

Durante a mesa “Plantas Professoras e Povos Indígenas”, realizada na tarde do dia 9, a psicanalista Jéssica Goudar celebrou a participação de indígenas e descendentes de povos originários na discussão, mas criticou o fato de essa representatividade ter ocorrido apenas no segundo dia do congresso. Goudar também manifestou incômodo com o uso do termo “índios” por alguns pesquisadores. “Não referenciam os conhecimentos dos povos originários e ainda falam sobre eles com um viés colonial”, escreveu a psicanalista em um post que desencadeou críticas ao evento, acusando-o de perpetuar um pacto de branquitude que impediria a voz das pessoas pretas no congresso.

Para Goudar, a perpetuação de atitudes coloniais prejudica a todos no campo psicodélico. “Aqui somos todos latinos, todos temos uma experiência racializada; não é vantajoso para ninguém neste território manter posturas coloniais, o que exige ressignificar várias práticas dentro da academia.”

Outro questionamento veio de Max Nunes, psicólogo preto da periferia: “Dizem que somos convidados a participar, mas o espaço não é realmente aberto para nós. Como é possível realizar um congresso brasileiro sobre psicodélicos sem incluir as cosmogonias e epistemologias africanas e indígenas?” Suas críticas encontraram eco nas de Joice Cruz, biomédica e uma das poucas pessoas pretas a participar do evento, que relatou visibilidade limitada ao seu trabalho por ele não ter sido transmitido online. “Foi muito pouco”, comentou Cruz em resposta à postagem de Nunes. “Me senti isolada, e esse parece ser um dos pontos em comum nas percepções das pessoas pretas.”

Críticas e resposta da organização

O critério de participação, segundo o psicólogo Fernando Beserra, fundador e coordenador da APB, foi o aprofundamento na temática, seja no âmbito acadêmico, militante, clínico ou político. “Buscamos a maior pluralidade possível nas mesas”, afirma Beserra, mencionando a presença de pessoas trans, indígenas, pretas e a busca por paridade de gênero. Ele também ressaltou a ausência de alguns convidados importantes, como Joel Puyanawa, do Acre, cuja participação foi cancelada dias antes do evento. “Houve também algumas ausências de pessoas pretas na última hora, o que comprometeu um pouco nossa diversidade.”

A APB comprometeu-se a melhorar os aspectos criticados e publicou um comunicado afirmando que as questões levantadas orientarão a construção de uma próxima edição mais plural. “Recebemos demandas e críticas muito pertinentes, sobretudo em relação à branquitude e à falta de pessoas pretas palestrando. Asseguramos que a diversidade sempre foi uma meta na composição de cada mesa, e sabemos que há um longo caminho a ser percorrido para que o evento seja mais diverso”, afirma o comunicado.

‘Não é índio, é indígena’

Durante o painel “Plantas Professoras e Povos Indígenas”, a bióloga Guarani Kaiowá, Kellen Natalice Vilharva, destacou a importância da empatia com os povos originários. “Falar de empatia é importante, mas onde está a empatia com os povos indígenas?”, questionou, antes de corrigir o uso do termo “índio” no evento. Vilharva compartilhou sua trajetória de pesquisa e explicou que a tradição de seu povo no uso de plantas como o cedro rosa enfrenta resistência no mundo acadêmico. “Laboratórios não vão conseguir reproduzir o que minha avó faz na aldeia”, afirmou.

O painel também contou com o curandeiro peruano Randy Chung Gonzales, do primeiro centro de vegetalismo do Brasil, o LIS (Lar e Integração do Ser). Gonzales apresentou práticas de dietas vegetalistas e cerimônias com plantas mestras, como a ayahuasca, compartilhando o conhecimento dos Quíchua-Lamas da Alta Amazônia peruana. Adriano de Camargo, neto de Guaranis e fundador do Instituto Nhanderu, encerrou o debate com relatos sobre o trabalho social com pessoas em vulnerabilidade e com dependência química.

O congresso reuniu cerca de 600 pessoas e contou com o apoio de universidades como a UFRJ, PUC-Rio, Unifesp, Unicamp e UFG, além dos conselhos regionais de psicologia de Paraná, Pernambuco e Rio de Janeiro. Entre as instituições presentes, destacaram-se associações e ONGs, como o Instituto Chacruna, a Rede Reforma e a Scirama. A revista Psicodelicamente participou de duas mesas.

Experiências e reflexões

Para capturar a percepção do público, a Psicodelicamente entrevistou participantes aleatórios. A advogada Bettina Maciel, da Planta Madre, apontou dificuldades no primeiro dia: “A recepção foi muito ruim, ouvi reclamações de outras pessoas também, especialmente sobre o prédio do auditório principal.” No entanto, ela reconheceu melhorias na organização ao longo do evento. “O saldo final foi positivo.”

Rebeca Lima, estudante de psicologia, viu o congresso como uma confirmação da área que deseja seguir. “Foi uma porta que se abriu, revelando o mundo psicodélico que existe. Trouxe um novo olhar e a vontade de aprofundar o conhecimento sobre as plantas de poder e seus contextos.”

A jornalista Carolina Apple, colunista de psicodelia do Brasil de Fato, elogiou o evento e concordou com algumas críticas. “Vejo observações construtivas”, afirmou, referindo-se à reflexão do psicólogo Max Nunes. Em postagem crítica, Nunes questionou o papel da APB no processo de expansão dos psicodélicos no Brasil: APB, como gostariam de ser lembrados?

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