Psicodelicamente

Revista digital independente de jornalismo psicodélico, criada pelo jornalista Carlos Minuano

Psicodelicamente

Festival indígena em SP destaca emergência climática e ayahuasca

Evento reúne, em Arujá, de 1 a 4 de maio, lideranças de 15 etnias, como o cacique Raoni, Célia Xakriabá, Txai Suruí e Daiara Tukano, e pretende ser um espaço de articulação pré-COP 30

Festival indígena em SP destaca emergência climática e ayahuasca
Festival indígena em SP destaca emergência climática e ayahuasca
Festival Indígena União dos Povos. Foto: Divulgação / Site
Apoie Siga-nos no

No município de Arujá, na região metropolitana de São Paulo, onde ainda resistem importantes remanescentes de Mata Atlântica, uma convocação ancestral vai ecoar entre os dias 1 e 4 de maio. O Fiup (Festival Indígena União dos Povos) reunirá lideranças de 15 etnias de diferentes regiões do Brasil, como o cacique Raoni, a deputada federal Célia Xakriabá, a ativista Txai Suruí e a artista e comunicadora Daiara Tukano.

Após o Acampamento Terra Livre (ATL) — a maior mobilização indígena do Brasil, que acontece nesta semana em Brasília e segue até 11 de abril — o Fiup se apresenta como mais uma prévia indígena da COP30 (conferência do clima da ONU), marcada para novembro de 2025 em Belém, a primeira realizada na região amazônica.

“Futuro é uma ficção ocidental, os povos originários lidam com o tempo de uma forma circular”, disse o escritor indígena Daniel Munduruku durante uma apresentação da edição deste ano do Fiup, realizada em São Paulo no mês passado. “Em algumas línguas indígenas não existe a palavra futuro.”

A fala de Munduruku resume de maneira poética o espírito do encontro. “Nós vivemos numa sociedade que caminha para frente, quando o certo seria caminhar para trás. A natureza faz isso: ela se desdobra sobre si mesma o tempo inteiro, num movimento de circularidade. O Ocidente nos chama para o tempo do relógio, da produção, da riqueza, do acúmulo — que nos aprisiona num chamado constante para sermos alguém na vida.”

“Essa cultura ocidental faz com que a gente não se encontre nunca”, continua. “Somos educados a sermos do futuro, e esse futuro acaba nos escravizando e nos desviando da real necessidade de sermos plenos e completos. A natureza é, em si, completa. Por isso, ela nos convoca o tempo inteiro a imitá-la — a não nos jogarmos nesse tempo linear, mas a sermos circulares.”

Com debates sobre território, espiritualidade e meio ambiente, o festival pretende amplificar as vozes dos povos originários diante das urgências climáticas e civilizatórias do nosso tempo. Entre os temas que ganharão destaque nas rodas de conversa, rituais e partilhas, está o uso da ayahuasca — bebida sagrada que, além de seu papel central nas práticas espirituais indígenas, tornou-se também foco de debates contemporâneos sobre medicina, ciência e políticas públicas.

Durante quatro dias de imersão, indígenas de diferentes regiões e biomas do país irão se encontrar com o público não indígena em um espaço pensado para o intercâmbio de saberes, rituais, cantos, danças e partilhas.

A programação inclui ainda filmes, apresentações culturais, feira de economia verde e rituais com medicinas tradicionais. A noite de sábado (3) será marcada por uma grande cerimônia com ayahuasca — conduzida por lideranças espirituais Huni Kuin e Yawanawá, com participação das demais etnias presentes e parte do público que passar por um processo prévio de escuta e anamnese com psicóloga.

Um dos momentos centrais da agenda será a roda de conversa “Exploração das Tradições Indígenas — Apropriação Cultural e o Uso da Ayahuasca em Contexto Urbano”, marcada para o sábado à tarde. O debate contará com nomes como Rasu Yawanawá, o pajé Ninawa Pai da Mata Huni Kuin, a artista e ativista Daiara Tukano, o pesquisador Jairo Lima, entre outros.

Mais do que dar visibilidade à riqueza cultural dos povos originários, o festival busca reafirmar o lugar central dos indígenas em todas as esferas da vida — da política à espiritualidade, da arte à filosofia, afirma Erica Rosendo, coordenadora do evento. “O principal objetivo é fomentar um espaço de encontro para diálogos sobre formas de preservar a vida, os biomas, as culturas, o conhecimento, a diversidade, a pluralidade.”

Para ela, o Fiup evidencia que os povos indígenas não estão apenas resistindo — estão também criando, ensinando, curando e apontando caminhos. “O protagonismo é dos povos originários em todos os cenários: como artistas, escritores, filósofos, líderes políticos, sociais e espirituais.”

Programação

Entre as novidades deste ano está a ampliação das ações culturais e educativas. Além da tradicional pintura coletiva em mural, o Fiup trará uma oficina de telas com mentoria de artistas indígenas — cujas obras poderão futuramente compor uma exposição itinerante. A programação também se abre ao diálogo com artistas não indígenas, como a cantora Maria Gadú, confirmada para esta edição. “Estamos fomentando essa rede de artistas dessa nova era que se alinham com os rezos tradicionais. É um palco de celebração e união”, diz Erica Rosendo.

Outra mudança significativa diz respeito à cerimônia de ayahuasca. Até a edição anterior, ela era aberta ao público. Agora, passará a ter número limitado de participantes, com critérios definidos por um novo conselho de saúde do festival. “É uma cerimônia grande, com 16 povos e mais de 100 indígenas. Por isso será restrita, com inscrições prévias, anamnese e ingresso à parte”, explica Erica, destacando a importância de garantir segurança e respeito à dimensão espiritual do ritual.

O espaço Samaúma, que concentra a feira de sustentabilidade do evento, também ganha uma nova abordagem. Além de abrigar estandes de artesanato e produção dos povos da floresta, o espaço passa a acolher marcas parceiras submetidas a critérios de rastreabilidade e compromisso socioambiental. “Estamos fazendo uma apuração rigorosa dessas empresas. O objetivo é filtrar as que realmente fomentam alianças com os povos da floresta e atuam com respeito à sociobiodiversidade. Tanto indígenas quanto quilombolas.”

Outro eixo essencial da programação do Fiup será o diálogo entre os saberes tradicionais e a ciência. Temas como medicina ancestral, pesquisa biomédica e políticas públicas estarão em debate, a partir de uma perspectiva que valoriza o pertencimento dos povos indígenas ao conhecimento que carregam. “A gente entende que quando há um interesse por uma determinada pesquisa — seja de uma molécula, de uma substância — é necessário haver uma consulta prévia aos detentores desse conhecimento, até então ainda não explorados”, afirma Erica.

Para ela, a integração entre ciência e espiritualidade só pode acontecer a partir de um princípio ético de escuta e reciprocidade. “É preciso que a ciência tenha essa consulta e participação dos povos, e que os pesquisadores deixem claro qual é a finalidade das pesquisas.” A ausência de protocolos éticos e legais que garantam esse diálogo é, segundo ela, um dos principais desafios atuais — junto com a falta de investimentos que promovam pesquisas verdadeiramente colaborativas.

O festival propõe, assim, criar pontes entre comunidades tradicionais, universidades e políticas públicas, discutindo também mecanismos de proteção legal contra a apropriação indevida de saberes ancestrais. “O Fiup é esse espaço de fala, de voz, do pensamento de cada povo. É onde se constrói uma visão de futuro que inclui ciência, tecnologia, mas também espiritualidade, floresta e pertencimento.”

Rumo à COP 30

Para Erica, a conexão entre o Fiup e a COP30 não é apenas uma coincidência de calendário — é uma articulação necessária. “Acreditamos que o evento irá fomentar articulações, mas pela visão dos povos. Consideramos, sim, ser uma pré-COP”, afirma. “É necessário que todos os temas que relacionam preservação tradicional cheguem a espaços como a conferência em Belém, porque é a partir daí que vem a verdadeira preservação ambiental, o entendimento de todas as formas de vida em alinhamento.”

O festival prepara uma carta-manifesto que será levada por lideranças indígenas à cúpula da ONU em novembro em Belém. Segundo ela, também está em produção um documentário com entrevistas e depoimentos que expressam a visão dos povos indígenas sobre os temas discutidos globalmente, como clima, território, espiritualidade e saberes tradicionais. “Queremos levar uma mensagem sobre a importância da escuta e da visibilidade dos povos guardiões do planeta”, diz Erica. “Cada liderança presente no Fiup vai manifestar sua própria visão sobre esse momento.”

Entre cantos e manifestos, partilhas e reflexões, o Fiup busca se consolidar como um espaço onde espiritualidade, ciência e política se encontram — e onde a floresta volta a falar por si mesma, por meio de seus guardiões. Um chamado que ecoa não apenas em Arujá, mas em todo o planeta.

Os ingressos para o Fiup variam de R$ 840 a R$ 1.700. A cerimônia com ayahuasca tem valor à parte, de R$ 250. Mais informações no site oficial: www.fiup.com.br.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo