Psicodelicamente

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Faculdade de Medicina da USP lança livro e curso sobre psicodélicos

Iniciativas indicam uma mudança de rota da instituição e fortalecem a legitimidade do uso médico de alucinógenos no País

Faculdade de Medicina da USP lança livro e curso sobre psicodélicos
Faculdade de Medicina da USP lança livro e curso sobre psicodélicos
Terapia com o uso de cetamina nos Estados Unidos (Foto: Maps/Divulgação)
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A crescente demanda por formação qualificada no campo da terapia psicodélica ganha um reforço inédito vindo de uma das instituições mais respeitadas do país. A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo  acaba de lançar o livro Terapia Psicodélica com Cetamina: Implicações clínicas para o cuidado em saúde (Manole), organizado pelos pesquisadores Alessandro Gonçalves Campolina, Angela Maria Sousa e Rodrigo Fonseca Martins Leite. A publicação reúne contribuições de psiquiatras, psicólogos, anestesiologistas e especialistas em cuidados paliativos, e oferece um panorama amplo e rigoroso sobre o uso da cetamina no tratamento de transtornos mentais e físicos.

Segundo Campolina, um dos objetivos centrais da obra foi destacar que a cetamina vai além de sua aplicação biomédica tradicional. “A maior contribuição, e era essa a nossa intenção, é mostrar que a cetamina não é apenas um analgésico, um anestésico, um antidepressivo; ela tem um potencial psicodélico e, se usada em conjunto com a psicoterapia, pode trazer benefícios para além daquilo que já é bem conhecido sobre a droga”, afirma o pesquisador.

Com abordagem interdisciplinar, o livro cobre desde os fundamentos farmacológicos até a aplicação clínica em casos de depressão resistente, dor crônica, transtornos de personalidade e risco suicida. Um dos capítulos também discute os desafios éticos, legais e formativos da prática psicodélica, em um momento em que cresce o número de clínicas e iniciativas oferecendo tratamentos com substâncias como a cetamina. 

Curso inédito na FMUSP

O lançamento do livro é acompanhado pelo curso online Terapia Psicodélica: Perspectivas Clínicas e Científicas, promovido pela plataforma de ensino do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da USP. Com início em 23 de agosto e inscrições abertas até o fim de julho, a formação tem carga horária de 10 horas e é voltada a profissionais da saúde mental, como psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e assistentes sociais. A formação também é aberta a interessados em geral no uso terapêutico de psicodélicos. São 150 vagas.

Dividido em cinco módulos, o curso aborda desde os fundamentos históricos e legais até as aplicações clínicas da cetamina, da ibogaína e de substâncias ainda em fase de pesquisa, como MDMA, LSD e psilocibina. Também há um módulo dedicado ao uso ritual da ayahuasca em contextos rituais e religiosos. A proposta é oferecer uma visão ética, técnica e crítica sobre o uso clínico de substâncias psicodélicas.

“A ideia do curso é reunir diferentes enfoques que articulam uma abordagem integrada e responsável na prática terapêutica”, afirma Campolina. “Falar dos aspectos históricos e verídicos é importante para quebrar preconceitos com essas substâncias, tanto dentro da sociedade quanto no campo clínico.”

Para o pesquisador, a formação contribui para desmistificar tanto o preconceito evitativo, que afasta profissionais da área, quanto o entusiasmo ingênuo, que encara os psicodélicos como soluções universais. “Juntar essas três abordagens, histórica, científica e clínica, é uma forma de mostrar que há valor terapêutico real. E que, com base em evidências, essas substâncias podem ser usadas com segurança, no presente e no futuro.”

Segundo Campolina, o diferencial do curso está na experiência prática dos convidados. “São profissionais que já estão utilizando essas substâncias, acompanhando casos e enfrentando dificuldades reais. A proposta é compartilhar essa vivência com quem está começando ou pretende incorporar essas abordagens na sua prática clínica”. Ele pondera que o curso tem caráter introdutório e não substitui uma formação longa. Ainda assim, considera seu lançamento um marco importante. 

USP na pauta psicodélica

Além do ineditismo do conteúdo, o que torna o livro e o curso ainda mais relevantes é a chancela da própria Faculdade de Medicina da USP, uma instituição historicamente conservadora no que diz respeito à incorporação de novas abordagens clínicas. Para Campolina, no entanto, essa tradição está longe de ser um obstáculo. Ao contrário, funciona como um filtro de qualidade.

“É importante ressaltar que ser conservador, em termos de ciência e medicina, significa ser parcimonioso”, afirma. “Quando uma instituição é parcimoniosa, ela observa com rigor os critérios de segurança e eficácia de um novo tratamento antes de respaldá-lo. E esse nos pareceu ser o caso da cetamina, em especial.”

Segundo o pesquisador, a decisão da faculdade de apoiar a publicação e o curso se baseou no acúmulo robusto de evidências científicas sobre o uso terapêutico da substância. “Talvez hoje a cetamina seja o medicamento com potencial psicodélico que tenha maior respaldo na literatura científica para sua aplicação clínica. Está bem à frente de outras substâncias que ainda estão em fase de estudo”, explica.

Campolina reconhece que a obra representa uma virada simbólica dentro da própria instituição. Até onde ele sabe, não há registros anteriores de publicações ou formações sobre psicodélicos com esse grau de endosso. “Esse livro inaugura algo novo. Me parece ser o primeiro caso em que a faculdade respalda essa modalidade emergente da terapia psicodélica”, afirma. 

Clínica e ensino com cetamina

Fora do ambiente acadêmico, Alessandro Campolina coordena, ao lado da médica psiquiatra Patrícia Skolaude Dini, o Instituto Aion, fundado em 2008 em São Paulo. O centro surgiu com a proposta de integrar psiquiatria e psicoterapia num mesmo projeto clínico, superando a fragmentação comum entre essas áreas. “Nossa perspectiva, desde o início, foi oferecer um atendimento simultâneo, em que essas duas dimensões atuem juntas”, explica Campolina.

O método também inclui práticas integrativas, como nutrologia, mindfulness e abordagens mente-corpo. “Desde o começo, abordamos o aspecto da qualidade de vida de forma integrada ao atendimento”, acrescenta Patrícia. Essa abordagem, dizem os dois, os levou naturalmente ao campo da psicoterapia psicodélica. “A psicodelia une exatamente aquilo que a gente sempre buscou: psiquiatria e psicoterapia atuando em sincronia. É uma terceira via”, diz Campolina.

Alessandro Campolina e Patrícia Skolaude, do Instituto Aion (Foto: Edson Lopes)

Nos últimos anos, o Aion tem se dedicado à psicoterapia assistida com cetamina (PAC), que combina sessões de preparação, experiência com a substância e integração posterior. O protocolo é voltado principalmente a quadros de depressão resistente, ideação suicida, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e dependência química.

A abordagem inclui avaliação psiquiátrica, exames clínicos e, quando necessário, o desmame de medicamentos como benzodiazepínicos. Em geral, são realizadas seis sessões com cetamina, acompanhadas de encontros de integração psicoterapêutica.

“A cetamina tem efeitos rápidos sobre os sintomas, mas também permite acessar conteúdos psíquicos com profundidade. Quando bem conduzido, esse processo amplia a estabilidade emocional e o engajamento no tratamento”, explica Patrícia.

Além do atendimento clínico, o instituto oferece o Fellowship em Psicoterapia Assistida com Cetamina, uma formação voltada a psiquiatras e psicólogos clínicos. Com 180 horas ao longo de um ano, o curso combina teoria, prática supervisionada, oficinas clínicas e masterclasses com convidados internacionais. A segunda turma está com inscrições abertas.

“Acreditamos que a cetamina representa o presente da terapia psicodélica. Mas, para que esse presente se transforme em um futuro seguro, é preciso formar terapeutas preparados e conectados à ética do cuidado”, conclui Campolina.

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