Psicodelicamente

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Psicodelicamente

Ex-‘The Voice’ relata homofobia em religião que usa ayahuasca 

Cantor do Ceará desabafou nas redes sociais sobre enfrentar deboche homofóbico em encontro da União do Vegetal

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Há poucos dias,  Marcos Lessa, cantor cearense e ex-participante do programa The Voice Brasil, publicou um vídeo em seu perfil no Instagram relatando ter sofrido ‘deboche homofóbico’ em uma cerimônia da UDV, a União do Vegetal, grupo religioso que usa a ayahuasca em suas cerimônias.

Segundo o cantor, o caso aconteceu em uma unidade do grupo em Cariri (CE), no último sábado, 11. Durante uma cerimônia, após um rapaz ter caminhado de costas próximo de onde dirigentes estavam sentados, devido ao espaço apertado, Jair Gabriel da Costa, 73, que comandava o trabalho, insinuando que ele seria homossexual, teria dito: “Cuidado para não sentar no colo do mestre, o Marcos Lessa começou assim.”

Em entrevista à Psicodelicamente, Lessa esclarece que não estava presente na ocasião. Primeiro, porque frequentava um outro núcleo, em Fortaleza. Mas, também porque já havia sido afastado pela direção do grupo religioso há cerca de um mês antes da sessão em Cariri. 

O motivo de seu afastamento foi uma entrevista concedida a um programa de podcast em que o cantor, sem citar a UDV, chamou de hipócritas um grupo de pessoas conservadoras com o qual convivia que não aceitava o fato dele ter ‘saído do armário’. 

Lessa afirma não saber de quem partiu o pedido para que ele fosse afastado e que a justificativa para isso também não ficou clara. “Alegaram que eu estava críticando dirigentes da UDV, é triste dizer isso, mas acredito que foi por conta da minha orientação sexual”. O cantor explica que a entrevista foi a primeira vez que falou publicamente sobre a sua homossexualidade. 

Apesar de lamentar a fala e as atitudes homofóbicas de dirigentes do grupo, Lessa defende a doutrina da UDV. Ele explica que faz parte do grupo há 30 anos, diz que foi onde seus pais se conheceram e se casaram. “Tive lá [na instituição religiosa] os momentos mais sublimes da minha vida.”

O cantor conta ter recebido mensagens de solidariedade de lideranças do grupo e não acredita que o caso represente o pensamento geral da instituição. Entretanto, o autor do comentário homofóbico que teve Lessa como alvo, Jair Gabriel da Costa, é o segundo filho de José Gabriel da Costa (1922-1971), mais conhecido como Mestre Gabriel, o fundador da UDV. No grupo, os dirigentes são chamados de ‘mestre.’  

Com inspiração cristã e reencarnacionista, a instituição religiosa, criada em 1961, tem mais de 20 mil seguidores espalhados por todos os estados brasileiros e em 11 países. Jair Gabriel foi eleito este ano o ‘mestre geral representante’, que irá conduzir a instituição de 2024 a 2026. 

Lessa revela ainda que não foi a primeira vez que ouviu comentários homofóbicos na UDV. Segundo ele, Edson Saraiva, outro dirigente da instituição, o alertou que, caso quisesse continuar no grupo, deveria vencer “isso que o aprisionou”.

Saraiva, de acordo com Lessa, teria dito que, para homossexuais ficarem na UDV precisam se comprometer com a transformação de seus costumes. 

“Reafirmo que minha orientação sexual não tem nada a ver com meus princípios morais, com meu caráter e minha hombridade”, disse o artista no vídeo. “A minha sexualidade não me aprisionou, me libertou.”

O que diz a UDV?

A UDV foi procurada pela Psicodelicamente para se posicionar sobre o caso. Segundo Tadeo Farias Feijão, presidente da Diretoria Geral do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, “a instituição não tem nem defende postura discriminatória com relação à opção sexual de nenhuma pessoa.”  

“O que a União do Vegetal prega é o respeito a todos os seres humanos, conforme ensinou o mestre José Gabriel da Costa, o mestre Gabriel, fundador do centro.” 

De acordo com o diretor, a doutrina transmitida pela União do Vegetal tem por base os ensinamentos de Jesus, de fraternidade e respeito aos seres humanos. 

“Com esses princípios, a UDV vem realizando há 62 anos seu trabalho beneficente e de preservação do meio ambiente, reconhecido por autoridades constituídas e hoje presente em todos os estados brasileiros e em 11 países.”

A instituição não informou se tomará alguma providência em relação ao caso em questão. A reportagem questionou ainda se Jair Gabriel da Costa se posicionaria sobre o ocorrido, mas não obteve resposta.  

Cura gay

“A UDV tem sido homofóbica desde o seu nascimento, contudo existia um grande tabu para se falar nisto, eu mesmo passei uma vida com medo de falar, pois temia ser rejeitada como pesquisadora e ativista no campo”, afirma a antropóloga Bia Labate, que há 20 anos pesquisa o campo psicodélico. 

Labate é autora e organizadora de diversos livros sobre o tema e criou o Instituto Chacruna de Plantas Psicodélicas Medicinais, sediado na Califórnia, onde vive desde 2017.  

“Eles possuem um documento heteronormativo que é lido em sessões”, prossegue a pesquisadora. Ela se refere a uma circular da instituição, de 2008, em que o grupo se posiciona contra a homossexualidade. A Psicodelicamente teve acesso ao texto. 

O documento que supostamente foi lido dentro de sessões de ayahuasca, afirma que o grupo jamais poderá concordar com a “prática do homossexualismo”, “visto que contraria a origem natural da existência humana”. Também se opõe ao casamento de pessoas do mesmo sexo pelo risco de uma possível “extinção da espécie humana”.

A antropóloga acredita que o depoimento de Marcos Lessa pode promover uma mudança de rumos na instituição. “São outros tempos”. Para Labate, o relato do cantor, em primeira pessoa, marca o início de outra era. 

“Acho que a UDV nunca esteve tão pressionada para mudar suas políticas. Infelizmente, contudo, as lideranças continuam dando declarações vazias e burocráticas.”

Extrema-direita psicodélica

O vídeo de Lessa nas redes sociais teve mais de 10 mil visualizações, e até o fechamento desta reportagem, 1.850 pessoas tinham comentado o caso na postagem do cantor. Vários depoimentos revelam casos semelhantes de homofobia. Muitos apontam para a mesma pessoa, Jair Gabriel. Outros, no entanto, acusam a cúpula do centro religioso. 

Antes do relato de Lessa vir a público, a Psicodelicamente foi procurada por um sócio da UDV. A pessoa, que pediu para não ser identificada, fala de uma cartilha moral que os integrantes da instituição devem seguir. Segundo ele, o documento impõe quase uma dezena de proibições, como não beber ayahuasca em outros lugares e não ser homossexual. Ele diz que a situação se agravou após o bolsonarismo tomar conta do grupo.

Desde a reta final da campanha presidencial em 2018, lideranças da UDV que apoiavam o então candidato Jair Bolsonaro começaram uma campanha política dentro do grupo. Parte da direção aderiu à onda e o discurso antiambientalista, armamentista e de ódio passou a reger muitas das sessões dos núcleos espalhados pelo Brasil inteiro.

Na época, um áudio expressando apoio a Bolsonaro foi disparado por um dos mais antigos líderes do centro religioso, Raimundo Monteiro de Souza. A mensagem, alinhada ao discurso do ex-presidente, falava de uma grave crise moral no país.

Souza defendia a família como “célula mater da sociedade”, se opunha a gays e “movimentos que degradem a moral”, atacava direitos de bandidos, chamava de “intromissão do maligno e do governo” supostas “cartilhas para crianças defendendo a libertinagem” e posicionava-se contra aborto e “ideologia de gênero”. 

O áudio encerrava criticando o desarmamento, que colocaria em risco os cidadãos de bem, e pedindo votos para o então candidato. A mensagem provocou uma celeuma na UDV. A polarização política dividiu seus seguidores e persiste até hoje. 

Líderes da UDV também participaram das manifestações golpistas contra o Estado Democrático de Direito, que começaram na noite de 30 de outubro de 2022 e culminaram com a depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, em Brasília – participação reportada nas redes da Psicodelicamente.

Família do cantor cobra resposta da UDV

A Psicodelicamente teve acesso a uma carta assinada por Célio Lessa, pai do cantor, e integrante da UDV. No texto ele cita o descumprimento de regras internas do centro religioso e cobra uma resposta efetiva para o caso envolvendo seu filho.

“Considero uma atitude inadmissível de ser tolerada no âmbito do  Centro e que além de constituir uma afronta e um desrespeito não só ao  irmão, mas a toda a família e amigos, é totalmente contrária aos princípios da UDV, suas leis e passível de ferir as leis do país”, escreve Célio na carta. 

O cantor destaca que, como uma instituição religiosa que tem como lema ‘luz, paz e amor’, a UDV não pode tolerar, principalmente dos seus dirigentes, uma postura de deboche e de desrespeito. “O que nós estamos exigindo é só isso, respeito.”

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