Psicodelicamente

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Psicodelicamente

Documentário reflete sobre o paradoxo do uso médico de alucinógenos

No passado diziam deixar maluco, hoje podem curar a mente; dilema embala o filme ‘Os psicodélicos podem curar?’, que chega ao streaming

Cogumelos com substância psicodélica são tratados em laboratório. Foto: Istock
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Há algumas décadas diziam que os alucinógenos poderiam deixar maluco, atualmente eles são vistos como potenciais remédios para curar a mente. Poderosamente transformadora para uns, perigosamente assustadora para outros, a experiência psicodélica há décadas intriga cientistas.

O paradoxo do uso médico dessas estranhas e misteriosas substâncias é o tema central do documentário norte-americano, Os psicodélicos podem curar?. Lançado em 2022, o filme acaba de chegar ao novo streaming nacional, Aquarius, dedicado a conteúdos com foco em ciência, psicologia e bem-estar.

Já nos primeiros minutos, o longa, dirigido por Larkin McPhee, apresenta um panorama da jornada curiosa dos psicodélicos e expõe interrogações históricas sobre eles.

A narrativa da diretora ecoa uma indagação de grande parte da sociedade: mal faladas por tanto tempo, consideradas drogas de abuso, como podem agora se tornar uma alternativa para milhões de pacientes sem respostas em tratamentos tradicionais?

Proibidos pelo mundo todo a partir da década de 1970, os psicodélicos se tornaram alvos de uma gigantesca campanha difamatória, imbuída do mais grotesco em termos de desinformação

Por muitos anos, boatos espalhados aos montes associaram o uso dessas drogas a riscos como de destruição dos neurônios, por supostamente serem corrosivas para o cérebro, além de loucura, suicídio e coisas do tipo.

Hoje, cientistas afirmam outra coisa. Segundo eles, alguns desses compostos, naturais e sintéticos, podem revolucionar o tratamento de vícios, traumas, depressão, ansiedade, entre outros tantos males da vida moderna.

Crise de saúde mental

Para entender a emergência dos psicodélicos para a medicina (e o interesse da sociedade por eles) não é preciso ir muito longe. Basta olhar para a atual crise de saúde mental no planeta. As doenças mentais já são consideradas o mal do século 21 e o Brasil ocupa lugar de destaque nesse cenário desolador.

A ansiedade afeta 18,6 milhões de brasileiros e os transtornos mentais são responsáveis por mais de um terço do número total de incapacidades nas Américas.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, o Brasil é considerado o país mais ansioso do mundo e o quinto mais depressivo. Para casos mais agudos desses transtornos, ainda não há tratamentos disponíveis.

Oportunamente, “Os psicodélicos podem curar?” estreia no mês da campanha Janeiro Branco, cujo propósito é alertar para os cuidados com a saúde mental e emocional da população.

Por meio de entrevistas com pacientes e cientistas, o longa busca esclarecer os impactos positivos de algumas dessas drogas alucinógenas, como o LSD e a psilocibina, presente nos chamados ‘cogumelos mágicos’.

Sem forçar muito a mão a favor ou contra, McPhee em sua narrativa opta por um caminho do meio, mais equilibrado e sem delírios alucinatórios ou apologéticos. O objetivo dela parece mesmo ser mostrar como essas substâncias atuam.

Psicodélicos no tratamento de dependência

Um dos casos destacados no documentário “Os psicodélicos podem curar?” é o do americano Jon Kostas. Autodeclarado bebedor compulsivo, ele chegou a tomar 23 drinks numa única noite. “Minha primeira reunião do AA (Alcoólicos Anônimos) foi aos 16 anos”, diz o jovem no filme. Ele conta ter procurado vários tratamentos e remédios.

“Foi o meu pior caso em mais de duas décadas de trabalho”, declara logo em seguida o psiquiatra especializado em dependência química, Stephen Ross, da Universidade de Nova Iorque, que atendeu Kostas.

Para ele, o rapaz corria grave risco de morrer aos 20 anos por causa do vício. Por isso, o médico o convidou para participar de um estudo clínico na universidade onde trabalha. Coincidentemente, um tratamento experimental com alucinógenos para tratar dependência de álcool.

O paciente recebeu duas doses de psilocibina, dos cogumelos alucinógenos do tipo Psilocybe cubensis, durante um tratamento de 12 semanas. No filme, Kostas se diz curado. “Vivo sem o vício, algo que nunca pensei ser possível.”

Porém, um nó ainda confunde a cabeça de muita gente: por que a psilocibina, tal como outros psicodélicos, permanece na maioria dos países, incluindo o Brasil, em listas de substâncias proibidas? E, para piorar um pouco, na categoria mais restritiva, como drogas de abuso, sem valor terapêutico, ao lado de outras como a heroína.

Por isso mesmo, para muitos, não parece fazer sentido, por exemplo, tratar um paciente com dependência de alguma droga de abuso com outra enquadrada na mesma categoria por agências de controle.

Sem falar na confusão semântica causada na percepção do público pelo famigerado termo ‘alucinógeno’. Para muitos, a palavra já encerra a questão, afinal se causam alucinações, como podem ser boas?

Ao longo de todo o documentário, a diretora procura responder a pergunta do título, ou seja, se os controversos psicodélicos podem mesmo curar. O caminho tomado ajuda a desmistificá-los e a combater o preconceito do qual permanecem sendo alvos, aliás, um dos principais desafios para saírem do limbo da proibição.

Em parte, isso é feito mostrando como a maioria desses compostos atua de forma semelhante. As moléculas presentes nos alucinógenos se encaixam como uma chave em uma fechadura, ligando-se a uma proteína no cérebro, o receptor de serotonina 5HT2A (conhecida como o hormônio da felicidade) nos neurônios.

Por esse mecanismo, a consciência é alterada e abre-se assim as portas da percepção. Diferentemente das formas tradicionais de tratamento, os psicodélicos permitem que o cérebro mude em vez de apenas suprimir os sintomas, afirmam os cientistas no filme.

Mas, eles fazem também uma advertência importante de ser lembrada. Os alucinógenos podem ser especialmente perigosos para pacientes com histórico pessoal ou familiar de transtornos psiquiátricos, como esquizofrenia, bipolaridade e psicose.

Não faz sentido proibir

No caso dos psicodélicos, para entender onde estamos é especialmente importante saber de onde viemos. O filme de McPhee traz um pouco de história. Contextualiza, por exemplo, o uso da psilocibina, revelada ao mundo ocidental pelo banqueiro americano Robert Gordon Wasson.

No final da década de 1950, ele passou por uma experiência com cogumelos mágicos em Oaxaca, no México, com a curandeira indígena Maria Sabina e depois contou tudo em uma matéria de 15 páginas na revista Life.

Embora superficialmente, o filme menciona a relação de indígenas com os ‘cogumelos mágicos’, utilizados por eles ritualisticamente há milhares de anos e cita o uso do cacto peiote em antigos rituais no México.

Outros dados históricos importantes, da década de 1960, são lembrados, como a associação do LSD com figuras da contracultura, como Ken Kesey e Timothy Leary.

Quem assistir o documentário saberá da descarada e frustrada tentativa da CIA (agência de inteligência americana) de transformar o LSD em uma arma de guerra.

E o principal: entenderá a relação entre a guerra às drogas da era Nixon e a demonização dos alucinógenos, além de seus impactos nefastos, como o de fechar a porta das investigações sobre os possíveis usos médicos delas.

Felizmente, pressionada por evidências científicas, a proibição dos psicodélicos começa a ser revista em alguns países, como nos EUA. Na Austrália, desde julho de 2023, médicos já podem prescrever psilocibina e MDMA, mais conhecido como ecstasy.

Neste contexto, filmes como o de McPhee podem ajudar na urgente tarefa de reabrir o caminho da legalidade para essas substâncias e ajudar o público a entendê-las melhor. Afinal, de acordo com médicos envolvidos e pacientes submetidos a essas terapias, resultados de estudos recentes têm sido surpreendentes. Na realidade, é a proibição dos psicodélicos que não faz sentido.

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