Psicodelicamente
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Dartiu Xavier: ‘O MDMA é um facilitador da psicoterapia’
Para o psiquiatra, pioneiro em pesquisas com psicodélicos no Brasil, país deve olhar para sua própria realidade antes de replicar modelos estrangeiros de regulação


“Acredito que é possível trazer para o Brasil o modelo terapêutico desenvolvido nos EUA com MDMA para tratar TEPT (transtorno de estresse pós-traumático), e estamos próximos disso”, afirma à Psicodelicamente o médico psiquiatra, Dartiu Xavier. No entanto, ele questiona: “Será que realmente precisamos?”
Vale lembrar que uma proposta de uso terapêutico de MDMA foi recentemente recusada nos Estados Unidos pela FDA (a Anvisa norte-americana), causando um retrocesso no campo psicodélico mundial, que há anos aguardava uma decisão favorável.
Xavier, contudo, tem dúvidas sobre a necessidade da adoção direta de um modelo americano. “Entendo que isso ocorre principalmente por questões de segurança, especialmente por se tratar de algo tão polêmico, inclusive do ponto de vista legal”. Ou seja, caso surjam questionamentos, pode-se argumentar que é um modelo já testado – e em breve, possivelmente aprovado – nos Estados Unidos.
O ponto-chave, argumenta, é se devemos apenas replicar um modelo estrangeiro ou se deveríamos considerar as especificidades culturais e contextuais do Brasil, onde o uso de psicodélicos, especialmente em rituais, têm uma longa tradição.
O médico é um dos pioneiros da pesquisa com psicodélicos no Brasil. Há 30 anos, ele conduz estudos sobre essas substâncias na Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp. Atualmente à frente de quatro ensaios clínicos, ele reflete sobre uma questão que intriga seu grupo de pesquisa. “O que estamos realmente investigando? É o princípio ativo agindo no cérebro ou é uma alteração provocada pelo psicodélico que facilita uma transformação, seja no contexto ritualístico ou psicoterapêutico?”
Ele ressalta a importância de refletir sobre a adaptação desse modelo importado à realidade brasileira. Será que ele será realmente eficaz, ou deveríamos buscar uma abordagem que integre nossos saberes ancestrais e valores culturais ao tratamento psicoterapêutico, visando resultados mais profundos e sustentáveis? E, claro, essa reflexão precisa considerar a realidade socioeconômica do Brasil, abordando questões cruciais como o acesso aos tratamentos.
Modelos terapêuticos
A recente rejeição da FDA à proposta da empresa Lykos Therapeutics para o uso terapêutico do MDMA nos Estados Unidos, entre outros pontos, levantou questionamentos sobre a psicoterapia. Xavier ressalta que os americanos não enxergam esse tema da mesma forma que o Brasil.
“Aqui seguimos um modelo europeu, entendemos a psicoterapia como uma transformação, os americanos não, eles trabalham com algo que chamamos de psicologia do ego. É uma coisa comportamental, com dicas, regras, limites.”
O médico argumenta que esse tipo de psicoterapia é visto por alguns especialistas como sendo mais superficial. Trata-se de um debate entre europeus e americanos que vem de longa data, pelo menos desde a década de 1930, na época do Freud.
“Quando você passa por uma experiência psicodélica, está imerso no inconsciente coletivo. Acho ridículo ficar falando em terapia do ego”, opina o médico. “A pessoa está diante de um universo novo, externo, mas interno também, que é o seu inconsciente.”
De acordo com Xavier, os elementos que surgem nas experiências psicodélicas provêm do inconsciente coletivo descrito pelo psiquiatra Carl Gustav Jung. “Por que todos veem serpentes? O que há por trás da jiboia da ayahuasca? Por que tantas pessoas vivenciam essas mesmas visões durante o efeito? Será que é apenas influência do que já sabemos?”, pergunta o médico, para logo em seguida responder: “Não é”.
“Sabemos que há algo além disso”, prossegue. “É algo mais profundo do que sugere a psicologia americana”. É exatamente isso que Dartiu e sua equipe procuram investigar. “Não estou negando que haja um efeito químico no cérebro, uma transformação, neuroplasticidade — tudo isso é real. Mas será que as grandes mudanças serão explicadas apenas por isso? Ou estão conectados a uma experiência mais profunda, que vai além do fenômeno meramente biológico?”. Ou seja, para ele, essas questões que ainda estão sendo exploradas, e as respostas que surgirão delas, podem redefinir nossa compreensão das transformações causadas pelas substâncias
Por que pesquisas com MDMA avançaram?
Entre todos os psicodélicos, o MDMA e a cetamina são os que possuem as pesquisas científicas mais robustas sobre eficácia, afirma Xavier. Mas por que esses dois compostos avançaram mais que os outros? No caso da cetamina, o médico explica que isso aconteceu por acaso. “Ela não carregava o estigma proibicionista, pois já vinha sendo usada como anestésico há mais de 40 anos, inclusive em crianças. Foi apenas nos últimos 15 anos que começaram a ser descobertas suas propriedades terapêuticas no tratamento da depressão.”
Xavier recorda que a ayahuasca também escapou do proibicionismo no Brasil graças a autorização para o uso ritual amparada por uma resolução de 2010 do Conselho Nacional de Políticas de Drogas. O médico coordenou o grupo multidisciplinar responsável pelos estudos sobre o chá amazônico que embasaram a decisão do órgão que endossa o uso cerimonial no país atualmente.
“Agora, o MDMA, eu não sei porque está na frente”, diz Xavier. Mas, ele acredita que seja por causa das pesquisas americanas, que revelaram dados promissores. Em dois estudos de fase três, pacientes tratados com uma combinação entre experiência psicodélica e terapia apresentaram melhoras expressivas nos sintomas de TEPT.
“O primeiro estudo brasileiro foi o nosso, inclusive”, comenta ele. “Foi um ensaio piloto, derivado das pesquisas realizadas pela Maps (sigla em inglês para Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos).
O médico destaca diferenças importantes entre as várias categorias de psicodélicos. “Se compararmos os psicodélicos para uso em psicoterapia — e eu faço isso com pacientes em pesquisas, seja com ayahuasca ou cetamina —, durante o estado alterado, a pessoa não está muito aberta a um trabalho terapêutico. Isso é diferente mo MDMA”, explica.
O MDMA, esclarece o médico, é uma droga empatogênica – ou seja, faz com que uma pessoa sinta vontade de falar, expressar seus sentimentos e externar suas emoções, o que facilita o processo terapêutico. “Com o MDMA, podemos fazer psicoterapia enquanto a pessoa ainda está sob o efeito da substância. Com os outros psicodélicos, isso só é possível fazer após a experiência.”
Para Xavier, essa distinção é fundamental. “Não é por acaso que o MDMA começou a ser treinado para o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático. Um veterano de guerra ou uma vítima de estupro, por exemplo, geralmente tem dificuldade de confiar nas pessoas. Nesses casos, a melhor opção é uma droga empatogênica.”
O ensaio piloto realizado no Brasil em 2017 foi pequeno; inicialmente, contaria com 16 pacientes, mas, segundo Xavier, algumas pessoas desistiram, e o estudo acabou sendo realizado com apenas quatro voluntários. “Alguns não puderam participar devido a problemas mentais associados, e outros mudaram de ideia por medo”, explica.
Os pacientes eram pessoas vítimas de estupro que desenvolveram sintomas de estresse pós-traumático. “Esse ensaio, vale ser mencionado pela curiosidade anedótica, por termos sido pioneiros por aqui nesse campo”, ressalta o médico.
*A entrevista completa será publicada no ebook Guia dos Psicodélicos Brasil 2024. Prevista para ser lançada no final deste ano, a publicação está sendo produzida pela Sinapse Social em parceria com a Psicodelicamente.
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