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Acre regulamenta extração de plantas da ayahuasca

A nova lei simplifica transporte para igrejas, mas foi aprovada sem estudos técnicos sobre espécies nativas, alvo de exploração predatória e desmatamento

Acre regulamenta extração de plantas da ayahuasca
Acre regulamenta extração de plantas da ayahuasca
Foto: Anastásia Vaz
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É perfeitamente possível (e até esperado) que existam estudos técnicos sobre a situação das plantas usadas no preparo da ayahuasca. Levantamentos de campo, inventários florestais, análises de regeneração do cipó Banisteriopsis caapi após cortes sucessivos, ou ainda monitoramentos via imagens de satélite, poderiam oferecer dados concretos sobre a distribuição, a densidade e os impactos da extração. No entanto, a primeira lei do país a regulamentar o tema foi aprovada sem que essas informações estivessem disponíveis.

Sancionada pelo governador Gladson Cameli (PP) no último dia 15 de setembro, a Lei nº 4.645 altera a Política Ambiental do Acre e estabelece regras específicas para a coleta e o transporte do cipó e da folha Psychotria viridis. O novo marco cria três níveis de licenciamento, do “reduzidíssimo impacto”, que permite até 150 quilos de cipó a cada 120 dias sem exigência de personalidade jurídica, ao “baixo impacto”, exclusivo para entidades religiosas formalmente cadastradas, com limite de 1.000 quilos de cipó por semestre.

O autor da nova regra é o deputado estadual Edvaldo Magalhães (PCdoB). O parlamentar defende que o objetivo não é abrir espaço para atividades comerciais, mas garantir segurança jurídica às entidades religiosas que cultivam e utilizam a ayahuasca em seus rituais. “A proposta da lei foi feita para amparar essas instituições, que não comungam de forma alguma com iniciativas voltadas ao comércio ou ao turismo”, disse ao blog Psicodelicamente.

Falta de inventário

A ausência de levantamentos oficiais foi reconhecida pelo próprio autor da lei. “Não foram realizados até hoje levantamentos sobre estoque e exploração natural do cipó e da folha”, admite Magalhães. O deputado ressalta que muitas igrejas já mantêm áreas próprias de plantio, mas reconhece que a pressão do desmatamento e da exploração predatória ameaça a sobrevivência não apenas do cipó e da chacrona, mas de várias espécies amazônicas.

Pesquisadores ouvidos pela reportagem reforçam essa lacuna. Para o engenheiro agrônomo Eufran Ferreira do Amaral, da Embrapa Acre, seria possível avançar em estudos integrados aos zoneamentos ecológicos e econômicos. “Avaliando e georreferenciando a ocorrência e associando com as tipologias florestais, integrando as informações de campo com uso de aeronaves remotamente pilotadas e imagens de satélite, se poderia indicar a ocorrência e avaliar a extensão das perdas”, aponta.

O também agrônomo Arthur Leite destaca que o cipó e a folha raramente aparecem em inventários florestais ou botânicos no Acre. “As espécies em ambiente natural estão sim sofrendo bastante pressão, principalmente do desmatamento acelerado e da exploração predatória para comercialização da bebida”, afirma.

Segundo ele, o risco não é de extinção imediata, já que muitas igrejas cultivam as plantas e adensam florestas com elas, mas isso não elimina a necessidade de pesquisas. “É correto e necessário ter estas pesquisas. Nenhum órgão de pesquisa tem dados sobre cultivo, altura do corte do cipó para rebrota, diferenças das espécies em cultivo. Existem várias espécies de cipó usadas no preparo da ayahuasca na Amazônia e poucas catalogadas em herbários.”

Conhecimento disperso

A maior parte das informações práticas está nas mãos das próprias igrejas, como a União do Vegetal (UDV), que mantém registros e experiências próprias de plantio e manejo. Pesquisas acadêmicas, quando existem, muitas vezes dependem da ligação pessoal de pesquisadores com instituições religiosas. “Muitas vezes os orientadores sabem menos que os próprios orientados, porque não há base consolidada. Até mesmo teses de mestrado e doutorado enfrentam dificuldade de apoio institucional”, observa Leite.

Ele ressalta que o cipó exige especial atenção, por ser de crescimento mais lento. Estudos sobre sua associação com determinadas árvores, tipos de solo e efeito da luminosidade no desenvolvimento poderiam oferecer parâmetros seguros de manejo. Enquanto isso não acontece, cresce o risco de pressão sobre populações nativas e de conflitos. “Já temos hoje casos de áreas de plantio e manejo das igrejas sofrendo com furtos de cipó e tentativas de roubo de bebida pronta, o que cria uma mudança na dinâmica das igrejas para se proteger”, relata.

Fiscalização e transparência

Outro ponto polêmico diz respeito ao transporte em larga escala. Nos bastidores do movimento ayahuasqueiro, circulam relatos de caminhões levando milhares de litros da bebida para o Sudeste. Questionado, Magalhães diz não ter dados sobre isso, mas alerta que, se confirmada, a prática deve ser combatida. “Casos de envio em tais proporções devem ser fiscalizados, pois a exploração ilegal cria pressão e risco sobre as espécies.”

O procurador Cosmo Lima de Souza, que foi relator do grupo de trabalho que deu origem à Resolução nº 1 do Conad em 2010, concorda que a lei pode trazer mais transparência. “O que a nova lei faz é justamente evitar que informações soltas ocupem o lugar de critérios objetivos. Ao criar faixas de transporte, de reduzidíssimo a baixo impacto, estabelece limites e exigências proporcionais”, afirma.

Para Lima, o texto também ajuda a reduzir riscos de criminalização indevida. “Ao estabelecer regras claras e proporcionais, distingue o uso religioso legítimo de práticas que possam se desviar para fins comerciais ou predatórios. Isso dá segurança às comunidades e clareza para a fiscalização.”

Liberdade religiosa e sustentabilidade

A lei acreana é vista por especialistas como um desdobramento da resolução de 2010, que fixou princípios gerais, legitimidade do uso ritual, proibição da comercialização e proteção de menores. Agora, trata-se de criar instrumentos práticos de manejo e transporte em nível estadual. “Passamos da definição de valores gerais para mecanismos operacionais que permitem compatibilizar liberdade religiosa e conservação ambiental”, resume Lima.

No entanto, a aposta do governo estadual só será efetiva se vier acompanhada de dados técnicos que hoje não existem. A regulamentação pelo Imac deve ocorrer em até 60 dias, por meio de sistema eletrônico próprio para as comunicações e autorizações de coleta. Caberá ao órgão revisar anualmente a norma, em diálogo com entidades religiosas e a Câmara Temática de Cultura Ayahuasqueira.

O advogado Konstantin Gerber avalia que a lei representa um avanço ao criar diferentes regimes de licença, do informal ao institucional, prevenindo o “garimpo vegetal” e o comércio ilícito. Mas alerta para a necessidade de garantir que a regra não impacte negativamente práticas culturais tradicionais. “Caso a norma ambiental venha a afetar o exercício da cultura indígena, será preciso realizar consulta prévia, livre e informada, como previsto no direito internacional. Ademais o reconhecimento de costumes indígenas é obrigação de toda e qualquer autoridade, conforme a Constituição”

Entre avanços e lacunas, a lei coloca o Acre na vanguarda do debate nacional. Sem inventários consistentes sobre o cipó e a folha, porém, seu alcance dependerá da capacidade de transformar promessas em conhecimento científico, condição indispensável para que a proteção ambiental caminhe junto da liberdade religiosa. Para isso, será preciso vontade política e investimentos concretos em pesquisa. Do contrário, corre-se o risco de que a nova regra se torne apenas mais um marco legal sem lastro na realidade da floresta.

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