Economia

A (in)efetividade dos regimes de metas de inflação

Estudo divulgado pelo FMI semeia dúvidas sobre os resultados alcançados pelos regimes de metas de inflação que ganharam larga popularidade nas últimas três décadas

Foto: USP Imagens
Apoie Siga-nos no

Não é de hoje que a adoção de um regime de metas de inflação (RMI) provoca persistente desassossego em uma parcela não desprezível dos economistas. A contribuição desse modo de conduzir a política monetária para o emprego, para a produção, para as contas públicas, para reduzir a própria inflação, para a melhoria, enfim, do bem-estar da maioria parece não condizer com sua aura de cura para todos os males monetários das nações.

Um extenso estudo, produzido por um analista do Fundo Monetário Internacional e um professor da Southwestern University em Chengdu, e publicado pelo FMI no final de 2022, demonstra, no mínimo, que a discussão sobre formas alternativas de condução da política monetária precisa ser desinterditada.

Revisão da literatura

Se o trabalho de Zhongxia Zhang e Shiyi Wang se resumisse à revisão da literatura sobre o tema já seria de grande utilidade para iluminar os domínios do RMI. Ao rever mais de 20 trabalhos, publicados entre 1983 e 2022, os autores já instauram no leitor a dúvida quanto ao custo-benefício dessa estrutura de condução da política monetária de um país. 

Uma das pesquisas citadas por eles, com o título Metas de Inflação: Vacina ou Placebo?, por exemplo, deixa margem para se questionar se eventuais ganhos no controle da inflação ocorrem em detrimento do PIB do país: “Em um estudo recente, Bhalla et al. (2022) confirmam que não há muita diferença, em média, entre os países que adotam o RMI e aqueles que não o fazem na inflação média, na volatilidade da inflação ou na ancoragem da inflação. No entanto, suas evidências sobre os impactos da adoção do RMI sobre o crescimento não são claras e oferecem alguma base para a preocupação de que ganhos com a inflação se dê às custas da produção.”

Em outro exemplo, é citada a pesquisa de Brito e Bystedt de 2010, Metas de Inflação em Economias Emergentes, em que os autores, segundo Zhang e Wang, “anulam as descobertas da pesquisa anterior e concluem que não há evidências de que o RMI melhore a inflação e o crescimento da produção nos países em desenvolvimento”.

A amostra e os primeiros resultados

A amostra da pesquisa de Zhang e Wang é composta por 68 países, sendo 32 economias avançadas e 36 economias em desenvolvimento. Suas primeiras análises comparam a inflação e o crescimento do PIB entre países que adotam e aqueles que não adotam o RMI. O crescimento do PIB dos dois grupos foi praticamente igual na década de 1990, foi favorável aos que não adotam tal metodologia na década de 2000 e modestamente melhor, na década de 2010, para os países que aplicam o RMI. No tocante à inflação os resultados foram amplamente favoráveis aos países que adotaram o regime nos anos 1990, em sua maioria países desenvolvidos. A diferença entre os dois grupos de países diminuiu fortemente na década seguinte e foi revertida nos anos 2010, década em que a inflação média foi menor nos países que não adotaram o RMI.

Sua primeira conclusão, desse modo, é que: “Os resultados dessas duas figuras [que mostram comparativamente o crescimento do PIB e a inflação para os dois grupos de nações] sugerem que os países que adotam o RMI, em média, não têm melhores resultados macroeconômicos de forma incondicional”.

Os autores elaboraram gráficos de dispersão para averiguar a relação entre a probabilidade, calculada para o período todo de adoção do RMI, de a inflação ficar dentro das metas e o crescimento médio real do PIB durante os mesmos períodos. Fazem o mesmo para a relação entre a probabilidade de a inflação ficar dentro das metas e a inflação média nos mesmos períodos. Em ambos os casos não foi possível verificar a existência de correlação entre as variáveis. Em outras palavras, o estudo conclui que não há claro indício de que uma maior probabilidade de se manter a inflação dentro das metas adotadas, o que pode ser entendido como uma maior eficiência no cumprimento da meta, implique maior crescimento do PIB. E, tampouco, que provoque inflação menor.

A pesquisa econométrica e seus resultados

Passam, na sequência, a investigar se a adoção de uma política monetária estruturada em um RMI afeta o desempenho macroeconômico, por meio de uma estimação da variação do PIB e da inflação que usa um modelo de painel dinâmico. As variáveis de controle para o PIB incluem taxas anuais de crescimento dos termos de troca, da população, do índice de capital humano e do índice de qualidade institucional. Para as regressões da inflação, as variáveis incluem a taxas anuais de crescimento dos preços das commodities, da taxa nominal efetiva de câmbio e do índice de qualidade institucional.

“Como esperado, as variáveis dependentes defasadas são positivas e estatisticamente significantes, sugerindo que o crescimento econômico e a inflação apresentam certos graus de inércia. Os termos de troca e o crescimento populacional conseguem elevar o crescimento econômico. Os aumentos dos preços das commodities elevam a inflação, enquanto a valorização nominal da taxa de câmbio efetiva e a melhor qualidade institucional reduzem a inflação. No entanto, os coeficientes estimados das variáveis dummy de RMI [1 para os países que adotam o RMI e 0 para os que não o adotam] em todas as regressões são estatisticamente insignificantes”, argumentam Zhang e Wang. E concluem: “Consistentes com a literatura existente, nossos resultados indicam que a adoção do RMI não é uma panaceia para promover o crescimento econômico e controlar a inflação”. 

Testes com novas medidas de desempenho do RMI

Para os testes seguintes, os pesquisadores selecionaram 21 países com histórias de adoção do RMI iguais ou superiores a dez anos e construíram três novas medidas para registrar a qualidade do histórico dos países, cobrindo o período completo de sua adoção pelos dos países. “Essas medidas quantificam a porcentagem de tempo em que a inflação permanece dentro da banda, a duração do período mais recente em que a inflação permanece dentro da banda e o período máximo de trimestres consecutivos em que a inflação fica fora das metas durante um determinado período”, explicam.

O objetivo destes novos testes foi verificar se um melhor histórico em manter a inflação dentro do intervalo estabelecido consegue melhorar o desempenho macroeconômico, contemporâneo e futuro, em termos de crescimento do produto e inflação.

Com as palavras escolhidas cuidadosamente – “os resultados deste estudo não necessariamente significam que um bom histórico do RMI seja inefetivo” -, Zhang e Wang revelam que suas pesquisas não só concluíram que o RMI não promove crescimento e baixa inflação em períodos futuros, mas, ao contrário, este regime pode resultar em menor crescimento no curto prazo. Afirmam eles que: “Portanto, descobrimos que melhores históricos no RMI não aumentam o crescimento econômico ou diminuem a inflação. (…) No entanto, os impactos de curto prazo dos históricos do RMI sobre o crescimento real do PIB são possivelmente negativos em um nível de significância menor. Como esperado, o RMI prioriza a inflação sobre o crescimento, portanto, o crescimento econômico pode ser menor quando os objetivos do RMI são atingidos”.

Conclusões

Zhongxia Zhang, do Fundo Monetário Internacional, e Shiyi Wang, da Southwestern University of Finance and Economics em Chengdu, sublinham a dificuldade de se falar em um modelo geral de RMI, pois há grande diversidade e mesmo frequente mudança de regras e metas. “Existem lacunas assimétricas entre os compromissos dos países que adotam o RMI com a estabilidade dos preços e suas ações para realmente fazê-lo”, defendem. 

Eles especulam que “uma razão para explicar essas lacunas pode ser que alguns países, especialmente os países em desenvolvimento, não tenham atingido totalmente as pré-condições para a adoção bem-sucedida do RMI. Fatores estruturais, incluindo mercados financeiros de baixa profundidade e dominância fiscal, não são favoráveis ao RMI”.

As recentes altas nos preços de energia e alimentos os leva a reconhecer que “a estrutura do RMI não é muito boa para lidar com choques de preços de commodities, que se mostram significativos para os resultados da inflação neste estudo”. Advertem que a elevação das taxas básicas domésticas “pode não conseguir dissipar os aumentos globais dos preços das commodities”, em detrimento da confiança no Banco Central.

Em suas conclusões finais, os autores “sugerem” que “que melhores históricos de na condução do RMI não se traduzem em crescimento econômico e taxas de inflação mais favoráveis no curto prazo”. E reforçam que “consistentes com pesquisas anteriores, nossos resultados confirmam que a adoção da estrutura de RMI não melhora o desempenho macroeconômico dos países em termos de crescimento e inflação”.

Eles lançam questões sobre as razões pelas quais o RMI não traz melhores resultados de inflação e crescimento no curto prazo e a motivação para os países buscarem tal solução para condução da política monetária. Apontam, ainda, os efeitos do RMI, potencialmente negativos, da valorização do câmbio, quando há necessidade de se adotar taxas de juros mais elevadas, bem como os efeitos, potencialmente positivos, da facilidade de comunicação com o público em geral.

Não obstante o caráter excessivamente fragmentário da pesquisa – inflação e PIB -, passando ao largo de avaliações mais amplas de bem-estar coletivo, uma inferência possível é que, frente aos resultados pouco animadores nas duas variáveis, a diversidade entre os modos de se estruturar um RMI e uma eventual vantagem na comunicação parecem não ser argumentos fortes o suficiente para restringir a busca por políticas monetárias mais eficientes e de menor custo para a sociedade como um todo. 

Especificamente no Brasil, é provável que a prioridade seja avaliar o custo de se manter altíssimas taxas reais de juros nas operações de um dia – na prática, o instrumento solitário utilizado pelo Banco Central – para tentar manter a inflação dentro da meta. Além das distorções nos preços da economia por promover rentabilidade muito acima da inflação em operações de curtíssimo prazo com baixíssimo risco, o alto nível dos juros promove valorização da taxa de câmbio e consequente perda de competitividade internacional, promove uma concentração absurda de renda, entre outras anomalias. Em 2022, segundo o Banco Central do Brasil, os juros sobre a dívida do setor público consolidado acumularam R$ 586,4 bilhões, o que equivale a 5,96% do PIB brasileiro. Um montante que por si só, mesmo sem se levar em consideração os resultados do estudo de Zhang e Wang, já deveria demandar um profundo escrutínio.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo