Observatório do Banco Central

Formado por economistas da UFRJ, analisa a economia suas relações fundamentais com a moeda e o sistema financeiro

O que resta do sistema de educação superior e de ciência, hoje? 

Proponho outra para pensar o modus operandi do governo Bolsonaro e seu programa anticientificista: a crise rumo ao desastre

O ex-presidente Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sá/AFP

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A pergunta que dá título a esse texto se deve ao desmonte do sistema de educação superior e de ciência, tecnologia e inovação, com os sucessivos bloqueios e cortes orçamentários, ao longo dos anos de 2016 a 2022.

A agudeza desses cortes é impressionante durante o governo Bolsonaro. Eles não expressam, apenas, o programa econômico de um governo neoliberal, que busca a redução do papel do estado brasileiro em setores como educação, saúde, ciência e tecnologia e inovação. São, na verdade, parte do modus operandi deste governo, da crise sobre a crise, tão bem identificada por Fernando Haddad em entrevista ao Roda Viva e já trabalhada por Naomi Klein como capitalismo de desastre.

A partir dessa denominação, eu proponho outra para pensar o modus operandi do governo Bolsonaro e seu programa anticientificista: a crise rumo ao desastre com efeitos nefastos sobre quem somos como civilização. 

Em se tratando de produção de conhecimento para o bem-estar social e do avanço civilizatório no campo da tecnologia e das humanidades, esse modus operandi tem impactos destrutivos ainda maiores: quanto mais os cortes se aprofundam, mais nosso país se aproxima do ponto de colapso da capacidade de entendimento e resolução dos problemas oriundos da devastação ambiental, da capacidade de entendimento de que não há resolução de emergências humanitárias sem que incluamos o fator humano.

O que testemunhamos na época mais aguda da COVID-19 já nos ensinou sobre isso e mais: nos ensinou que ciência, tecnologia e humanidades são o tripé que dá suporte à nossa civilização. Por isso, o sentido da pergunta traz um tom quase humanista. Ela se inspira no discurso proferido pelo escritor francês Victor Hugo, na Assembleia Constituinte da França em 10 de novembro de 1848, em que situa o corte orçamentário da época como uma decisão pela austeridade da glória, da grandeza de um país e um verdadeiro mergulho no abismo da ignorância. 

Esse discurso de 1848 poderia ser proferido ao Congresso Nacional de nosso país, servindo de alerta civilizatório no quadro da extensão dos impactos do modus operandi da crise rumo ao desastre sobre o sistema de educação superior e de ciência, tecnologia e inovação. De fato, nosso recuo civilizatório tem número e envolve cortes orçamentários progressivos, e em escala crescente, junto com ataques sistemáticos à liberdade acadêmica.


Em 2015, o aporte de recursos para as universidades federais era em torno de R$ 12 bilhões; em 2019, o aporte caiu para R$ 7,4 bilhões e, em 2021, chegamos a R$ 4,4 bilhões. Em 2022, esse orçamento reduzido sofreu um duro golpe com o bloqueio de R$1,6 bilhão no orçamento do Ministério da Educação. Além disso, o governo editou a MP 1.136/2022 para congelamento de mais de R$ 3,5 bilhões dos recursos aprovados para 2022 para o FNDCT. Dados compilados pela SBPC evidenciam o abismo que se abriu no orçamento de Ciência e Tecnologia do MCTI durante o governo Bolsonaro a ponto de ficar no limiar orçamentário de 2002. 

Cortes dessa magnitude impactam toda a cadeia de produção de conhecimento científico no país, conforme afirmou o professor Roberto Lent, da UFRJ, em 2021: um laboratório e/ou grupo de pesquisa, que sofre cortes vultosos e sucessivos, leva muitos anos para começar a acompanhar a velocidade das descobertas científicas, das atividades de pesquisa do mundo lá fora, e com perdas irrecuperáveis de alunos e pesquisadores brasileiros que acabam saindo do país ou desistindo da dedicação à pesquisa. É preciso dizer mais: trata-se do colapso do tripé formado pela ciência, tecnologia e humanidades que fundamenta e direciona nossa civilização.

Neste quadro que vivemos, há ainda outro ponto: o ataque à liberdade acadêmica como mordaça imposta a esse tripé. Conhecemos registros desses ataques desde o ano de 2018. Entre os dois turnos das eleições presidenciais ocorridas naquele ano, 17 centros em universidades foram invadidos pela polícia federal a mando de juízes federais.

Recentemente, a pesquisa conduzida pelo Observatório do Conhecimento, a SBPC e a LAUT, cujos resultados foram apresentados na 74ª Reunião da SBPC, mostram dados alarmantes: na amostra de 1.116 respondentes ao questionário sobre ameaça à liberdade acadêmica, 58% das respostas relatam conhecer experiências ou pessoas que já sofreram limitações ou interferências em pesquisas ou aulas;  entre 35% e 42% já limitaram aspectos de suas próprias pesquisa e conteúdos de aulas por receio de retaliações e 43% avaliaram como ruins ou péssimos os procedimentos de suas instituições para lidar com denúncias e ameaças à liberdade acadêmica. Esses ataques ferem diretamente os artigos 216 e 217 da Constituição Federal, que asseguram a liberdade acadêmica na transmissão e produção de conhecimento e a autonomia didático-científica e de gestão financeira e patrimonial das universidades. 

Já estamos no desastre e consequências muito difíceis de serem revertidas já nos assolam como civilização: uma delas é o anticientificismo, com impactos de rebaixamento do protagonismo do país, de aprofundamento da insegurança e desigualdade ainda desconhecidos.

Há o risco real de elegermos, mais uma vez, um programa delirante de governo, que envolve pautas de gênero, pautas religiosas e qualquer outro delírio anticientificista que caiba ali. O desastre provocado pelo governo atual já está instalado. Não precisamos apostar no abismo. 

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