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Gestão de fluxos de capitais e o caso da Evergrande

Para analisar a crise da Evergrande, deve-se compreender o papel das medidas de gerenciamento do fluxo de capitais na China

A empresa chinesa Evergrande é gigante no setor imobiliário. Foto: Hector Retamal/AFP
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Nas últimas semanas, muito se falou na possibilidade da quebra da gigante chinesa Evergrande se tornar um novo “momento Lehman”, episódio que marca o início da crise financeira global de 2008.

Naquela ocasião, a desregulação financeira levada a cabo nos anos 1990 permitiu o desenvolvimento, nos Estados Unidos, de um enorme mercado de ativos lastreados em hipotecas de alto risco e um conjunto de inovações financeiras relacionados a eles. A integração financeira global, por sua vez, permitiu que esses papéis fossem negociados no mundo todo, o que deu caráter global a uma crise inicialmente local.

 

Para compreender os potenciais efeitos da crise da Evergrande no sistema financeiro chinês e global, deve-se compreender o papel das medidas de gerenciamento de fluxos de capitais (CFMs na sigla em inglês) na China.

As CFMs abrangem dois conjuntos de medidas: aquelas que distinguem os fluxos a partir da residência de origem/destino, ou seja, restrições ao livre movimento de capitais, chamadas de controles de capitais; e as que não fazem distinção pela residência e têm como principal objetivo limitar o risco sistêmico, as chamadas medidas macroprudenciais, que envolvem, entre outros, requerimentos mínimos de liquidez e limitações nos tipos e destinos de financiamento.

Dentro do objetivo mais geral de reduzir o risco sistêmico, as medidas macroprudenciais buscam mitigar os efeitos da alta mobilidade dos fluxos, enquanto os controles vão à raiz do problema, a mobilidade em si. Estudos mostram que atuando em conjunto, tais medidas aumentam o potencial de sucesso[1].

Apesar do relaxamento de medidas experimentado nos últimos anos, a China é um dos países que mais adotam CFMs. Pode-se destacar que eram mais estritos sobre a conta financeira, com alguns setores liberalizados para entradas e saídas de capital por não residentes, acompanhados por outros de controles bastante rígidos sobre entradas de capital não residentes, tais como os bancos, seguros e mercado de ações.

Outros controles mais estritos se dão sobre o endividamento estrangeiro por residentes, incluindo a denominação da moeda e estrutura de vencimento dos ingressos de dívida; de entradas e saídas de residentes; e sobre as taxas de juros domésticas. Essa prática mais abrangente nas CFMs se refletiu em maior estabilidade da taxa de câmbio comparada com outros países emergentes, inclusive na crise de 2008 e na da pandemia.

Parte da fachada de um empreendimento da Evergrande em Hong Kong. Foto: Peter Parks/AFP

De acordo com relatórios do Fundo Monetário Internacional[2], entre 2014 e 2016, a China optou por flexibilizar certas medidas de controle cambiais. Nesse período, o país empenhou grande volume de reservas para tentar conter a depreciação de sua moeda, em torno de 1 trilhão de dólares. Diante disso, optou-se pela retomada de controle de capitais, principalmente restrições às saídas. Como resultado dessas medidas e em combinação com o enfraquecimento do dólar, a China conseguiu conter a onda de depreciação de sua moeda.

Embora muitos aspectos no que tange às CFMs tenham se mantido, não se nega que tenha havido desregulações no sistema financeiro chinês nas últimas décadas. Nesse sentido, há que se destacar a possibilidade que a Evergrande teve em alcançar o passivo de 1,97 trilhão de yuans (aproximadamente 300 bilhões de dólares), cerca de 2% do PIB chinês (Reuters), inclusive por meio de instrumentos financeiros, como os wealth management products, os quais são mantidos especialmente por instituições de varejo (Reuters) e têm potencial de risco sistêmico (CNBC).

Por outro lado, além da China manter mais CFMs, também não passou pelo mesmo processo de abertura do sistema financeiro a instituições estrangeiras, de forma que o sistema bancário além de ser de propriedade local, é predominantemente público. Desta forma, mesmo com esse expressivo passivo, por ele ser denominado em sua maioria em renminbi (Jabbour) e atrelado a instituições financeiras residentes (128 bancos e 121 instituições não bancárias), o potencial impacto para o mercado cambial e para o espraiamento da crise pode ser mitigado pela ação do Estado.

A crise financeira global de 2008 pode ser vista como o início de um processo de mudança na teoria e nas políticas econômicas, em que o otimismo ou wishful thinking das políticas liberais e da desregulação financeira foi dando lugar à visão da necessidade de um maior papel do Estado. A pandemia da Covid-19 reforçou essa tendência e o episódio da Evergrande parece ter ensinado algumas lições. A que buscamos destacar aqui é as CFMs utilizadas pela China podem ter tido papel importante tanto para reduzir os efeitos da crise sobre o mercado doméstico e a taxa de câmbio, como para que ela não se tornasse uma crise global.

Cabe refletir quão forte teria sido a pressão cambial se a China mantivesse um mercado de câmbio semelhante ao Brasil, cujo mercado futuro – que é mais suscetível à especulação – ultrapassa em muito o tamanho do mercado à vista e as regulações sobre entrada e saída de capitais são cada vez mais tênues. Não é de se estranhar que países emissores de moeda periférica e financeiramente abertos possam sofrer maior pressão cambial do que a própria China.

[1] EPSTEIN, G., GRABEL, I., & JOMO, K. Capital management techniques in developing countries: an assessment of experiences from the 1990s and lessons for the future. G-24 Discussion Paper 27, 2004.

[2] Annual Report on Exchange Arrangements and Exchange Restrictions de 2014 a 2017.

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