O Mundo É uma Bola

A visão de Luiz Gonzaga Belluzzo sobre esporte e sociedade

O Mundo É uma Bola

O futebol, da Liberdade ao Paraíso

No Glicério, na Liberdade, no Carmo, na Mooca, no Bom Retiro, na Lapa, às margens do Pinheiros e do Tietê, no Parque da Aclimação, celebravam-se incríveis porfias entre times de todos os bairros

Meninos da comunidade Metrô-Mangueira jogam futebol e interagem com turistas em rua interditada por policiais nos arredores do estádio do Maracanã (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
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Nos anos 50 e 60, São Paulo de Piratininga se transmutava de capital da província para a metrópole. Terminou por seguir os descaminhos da megalópole cosmopolita periférica. Dizem que suas formas – feias, desconjuntadas, híbridas – são o avesso da urbanidade e do urbanismo. Deixo o julgamento para os especialistas.

Meu olhar de menino e adolescente, fanático pelo dito esporte bretão, via São Paulo como um imenso campo de futebol, interrompido por impertinentes avenidas e arranha-céus. Jogava-se futebol nas ruas, nos becos nos terrenos baldios, nos quintais, em todos os cantos. No vale que iria receber a avenida 23 de maio – entre a Liberdade e o Paraíso – eu assistia, nos fins de semana, sentado nos barrancos, a bola dos adultos correr solta. Nos dias úteis, a molecada cabulava aula e se juntava nos terrões que simulavam campos de futebol. Os gazeteiros ora celebravam os gols marcados, ora se estapeavam por conta de faltas controvertidas. Socos e pontapés eram desferidos com lealdade e até mesmo com amizade. Tudo acabava bem, descontadas as fraturas de crânio e de nariz.

Sábados e domingos, pela manhã ou à tarde, os craques da várzea exibiam suas habilidades nos times organizados. No Glicério, na Liberdade, no Carmo, na Mooca, no Bom Retiro, na Lapa, às margens do Pinheiros e do Tietê, no Parque da Aclimação, celebravam-se incríveis porfias entre times de todos os bairros, todos os tamanhos e reputações. Quem era do meio sabia distinguir os grandes dos pequenos nesse imenso campeonato informal.  Nos anos 60, eu batia minha bolinha no modesto, mas não menos vitorioso Buscapé F.C: camisa grená, calções brancos, meias variadas. Meu maior troféu foi um hematoma na perna esquerda produzida por um tarugo de 2 metros, zagueirão da metalúrgica Lanzara, que não gostou da minha “caneta”, ou seja, da bola entre as pernas. “Não vem que não tem. Lugar de palhaço é no circo”, justificou o bate-estaca.

Os gramados, quando existiam, eram ralos, o que exigia habilidade apurada para dominar a bola, acertar o passe, fazer ou receber o lançamento. As bolas de couro, duras, pesavam toneladas quando chovia. As chuteiras eram instrumentos de tortura, tanto para o usuário quanto para o infeliz que sofria o seu impacto na canela. Os cravos de couro pregados na sola espetavam os pés do algoz e lanhavam as canelas da vítima. 

Fora os torneios amadores patrocinados pela Federação Paulista e disputados entre os “grandes” da várzea, não havia contagem de pontos ganhos nem perdidos. Valiam as séries invictas, alardeadas de boca em boca, suscitando a inveja e a rivalidade, que, não raro, terminavam em pancadaria.  Mas, é bom que se diga:quase sempre as desavenças eram resolvidas no braço. Tiros e facadas, só em doses moderadas.  Quando o pau quebrava, os visitantes, minoritários, escapavam para os caminhões – já preparados para a fuga – com o uniforme de jogo. Os trajes civis e os pertences, quando não uma parte da grana do mês, eram abandonados no vestiário ou local assemelhado.

Os temerários que aceitavam apitar os jogos sofriam os espancamentos de praxe, quando não eram expulsos por jogadores do time local, insatisfeitos com a arbitragem. Visitantes eram em geral assaltados por mediadores caseiros. Não tugiam nem mugiam. Galo no terreiro do vizinho é galinha. 

 As partidas e os torneios – os chamados festivais- eram combinados durante a semana. Nas escalações, estampadas nas tabuletas afixadas nos bares mais freqüentados de cada região, os nomes próprios não davam conta dos apelidos. Como histórias de pescador, corriam as lendas sobre as proezas de craques varzeanos famosos. Narrativas sobre os virtuoses de campos despelados “quase” contratados pelos times profissionais da Capital. Na maioria das vezes o peixe não era tão grande a ponto de merecer o anzol de um pescador profissional. Eram muitos os chamados, poucos os escolhidos. 

Lembro de alguns que passaram do “quase” e se tornaram ídolos nos gramados do futebol oficial, com direito a nome no jornal e esperança de chegar á seleção brasileira. Julio Botelho, o Julinho, Djalma Santos, Carbone, Idário, Waldemar Carabina, Rubens, Homero.

No Facebook, Alberto Luís escreveu a respeito das regras do futebol de pelada de outros tempos. Vale a pena revisitar os princípios que guiavam os “peladeiros” e incitavam a disputa, a um só tempo, dura e amistosa.

Aqui vão as regras:

(1) Os dois melhores não podem estar no mesmo time. Logo, eles tiram par-impar e escolhem os times.

(2) Ser escolhido por último era uma grande humilhação.

(3) Um time jogava sem camisa e o outro com camisa.

(4) O pior de cada time era o goleiro, a não ser que tivesse alguém que gostasse de agarrar.

(5) Se ninguém aceitava ser goleiro, adotava-se um rodízio: cada um agarrava até sofrer um gol.

(6) Quando tinha um pênalti, saia o goleiro ruim e entrava um bom só para tentar pegar a cobrança.

(7) Os piores de cada lado ficavam na zaga.

(8)  O dono da bola jogava sempre no mesmo time do melhor jogador.

(9) Não tinha juiz.

(10) As faltas eram marcadas no grito: se você fosse atingido, gritava como se tivesse quebrado uma perna e conseguir a falta.

(11) Se você estava no lance e a bola saia pela lateral, gritava ” é nossa” e pegava a bola o mais rápido possível para fazer a cobrança (essa regra também se aplicava ao “escanteio”).

(12) Lesões como arrancar a tampa do dedão do pé, ralar o joelho, sangrar o nariz e outras eram normais. Pra isso existia o Merthiolate (que ardia igual inferno).

(13) Quem chutava a bola para longe tinha que ir buscar.

(14) Lances polêmicos eram resolvidos no grito ou, se fosse o caso, na pancada.

(15) A partida acabava quando todos estavam cansados, quando anoitecia, ou quando a mãe do dono da bola mandava ele ir pra casa; ou aquela vizinha prendia a bola que caia na casa dela ou cortava bola.

(16) Mesmo que estivesse 15 x 0, a partida acabava com o “quem faz, ganha”.

(17) Rua de baixo contra rua de cima valendo garrafa de Coca-Cola….

(18) Mesmo que chova forte, certamente haveria futebol.

(19) O famoso grito “paroooou” quando vinha carro ou uma mulher grávida, ou com criança, passando perto da pelada.

(20) Não existia essa de Adidas; Nike…Era Kichute ou jogava descalço. E o goleiro não usava luvas; usava era chinelo havaianas na mão.

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