O Mundo É uma Bola

A visão de Luiz Gonzaga Belluzzo sobre esporte e sociedade

O Mundo É uma Bola

Futebol: igualdade e universalidade

Tudo ou quase tudo que se relaciona com o jogo da bola recebe o toque do prestígio, do poder ou do dinheiro

Foto: AFP
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Umberto Eco é autor de um artigo em que examina a vida moderna através do comportamento dos fanáticos do chamado esporte bretão, jogo desenvolvido e aperfeiçoado pelo povo da República Federativa do Brasil.

Eco odeia os fanáticos do futebol, porque os vê como agentes do nacionalismo ecumênico, como “criaturas tão convencidas da igualdade entre os homens que são capazes de quebrar a cabeça do fanático da província limítrofe”. Convencidos da universalidade do seu particularismo distribuem porradas nos que estão no mundo exatamente como eles, só que do lado contrário. Eco descobre no fanático do futebol, o ser emblemático da pós-modernidade, o apóstolo da homogeneidade absoluta do discurso, um ponta-de-lança da igualdade ao rés das chuteiras, que esconde sua obsessão pela igualdade mais primária sob a paixão pela cor diferente da camisa de seu clube. “Não têm sequer a noção de diversidade, variedade e incomparabilidade dos mundos possíveis.”

O futebol é o esporte das multidões. Hoje em dia, o futebol assumiu os contornos da globalização: tudo ou quase tudo que se relaciona com o jogo da bola recebe o toque do prestígio, do poder ou do dinheiro. Quem estiver interessado nas questões do universal e do particular, na compreensão do coletivo e do individual poderia buscar  inspiração no futebol contemporâneo.

Nos tempos do velho profissionalismo certamente imperava o prestígio. Não raro, o poder. O dinheiro, salvo as conhecidas e escandalosas exceções, corria dos bolsos dos cartolas para os cofres dos clubes. Nos anos dourados do futebol brasileiro, entre o final dos 50 e o início dos 60, a coisa era assim. Ainda me lembro do ex-presidente do Palestra Mário Frugiuelli exibindo o seu cheque pessoal, usado na compra do passe de Chinesinho. Vicente Mateus, então presidente do Corínthians, contratou Almir com o dinheiro da sua conta bancária.

Depois da recente invasão dos critérios capitalistas na gestão esportiva, o dinheiro corre de lá para cá, de cá para lá. Chamam isso de modernidade, progresso, novo profissionalismo. Se estou certo nas contas, a progressiva submissão da atividade humana ao comando despótico do dinheiro vem ocorrendo há pelo menos dois séculos.

Não é de espantar que tenha chegado a hora do futebol. Esporte preferido pelas multidões globalizadas, o futebol transformou-se num grande negócio. Perceba o leitor que isso aconteceu depois que a televisão assumiu o comando do espetáculo à escala planetária. Aí, sim, o futebol passou a ser um excelente veículo de marketing, manejado e patrocinado por empresas que operam em muitos mercados.

Lembrei-me de Jean-François Lyotard e de seu elogio da pós-modernidade. Ele dizia: “Não podemos mais recorrer à grande narrativa – não podemos nos apoiar na dialética do Espírito, nem mesmo na emancipação da humanidade para validar o discurso científico pós-moderno”. Para Lyotard, a verdade é a parte. A fragmentação é o único caminho que pode reconciliar o indivíduo com a sociedade, parece proclamar Lyotard em sua fúria para destruir a herança do Iluminismo. Ele argumenta que as concepções teóricas, as interpretações da história são necessariamente coercitivas e dogmáticas e, pior que isso, as Filosofias da História levam inexoravelmente a humanidade ao beco sem saída da opressão e do totalitarismo.

Hegel havia imaginado que a igualdade e a diferença não só seriam indissociáveis na sociedade moderna, como deveriam subsistir, reconciliadas, sob as leis de um Estado Ético. Este Estado permitiria a cada elemento preservar sua diferença em relação aos outros e, ao mesmo tempo, harmonizá-la entre si, manter a integridade do todo. Mas, as transformações econômicas das sociedades modernas e o fracasso das tentativas de impor o Estado Ético reforçaram, na verdade, a fragmentação e, neste particular, o discurso da pós-modernidade apenas conclui o que os fatos dizem. Os fatos dizem que assistimos ao declínio das Utopias, à degradação das propostas coletivas, ao memento mori das Grandes Filosofias.

O mundo, em sua evolução e na transformação das consciências, se aproxima de um incompreensível mosaico colorido, formado por todas as torcidas de futebol que têm em comum a paixão pela bola e a dificuldade de aceitar as razões do outro. “Deixem que os outros venham a nós. Assim poderemos bater à vontade”, resume Eco.

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