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Na relação entre o homem e a natureza, toda folha tem o poder de curar

O olhar apressado do colonizador não deu conta de compreender o sentido profundo das folhas na construção da cultura de um povo

Foto: Mauro Halpern / Creative Commons
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“Amigo sinhô, saravá! Xangô me mandou lhe dizer: se é canto de Ossanha não vá, que muito vai se arrepender. Pergunte pro seu orixá, o amor só é bom se doer.” Esse famoso afro-samba de Baden Powell e Vinícius de Moraes popularizou a divindade iorubá das folhas e ervas medicinais e litúrgicas, mas está longe de expressar o poder de Ossayin e sua importância fundamental na elaboração e manutenção de uma medicina tradicional africana.

O olhar apressado do colonizador não deu conta de compreender o sentido profundo das folhas na construção da cultura de um povo. Para além do conhecimento científico e mágico, que ajuda a alcançar o equilíbrio por meio do manuseio das plantas, existe um conceito filosófico de saúde e doença. Nesse sentido, a medicina que se constitui nessas civilizações entende o ser humano em sua totalidade e atua na prevenção e nos cuidados para uma vida feliz e saudável.

Em nossas tradições, a noção de cura passa por questões diversas. Por isso, entender saúde e doença com base no ethos, ou seja, enquanto construções sociais e filosóficas, rompe com a concepção ocidentalizada de atacar os sintomas, entendendo que as causas ultrapassam os aspectos médicos e que um ser compreendido integralmente está inserido num universo cultural. Em outras palavras, a magia da cura é um poder/saber que não se resume ao princípio ativo das folhas. Trata-se de uma epistemologia que entende o remédio como um elemento importante no tratamento de doenças, mas o associa a outros componentes essenciais.

Ossayin detém o ofó, a palavra que desperta o poder das folhas. Ossayin detém o conhecimento. Uma erva só pode curar se houver um saber constituído e fundamentado em torno de suas potencialidades. Baden e Vinícius não rasparam o fundo da panela, não tinham olhos pra ver a grandiosidade desse orixá indispensável ao culto. “Coitado do homem que cai no canto de Ossanha traidor, coitado do homem que vai atrás de mandinga de amor.” Pobre de quem não entende que a sabedoria dos povos africanos pode contribuir decisivamente para uma nova relação com a saúde e os processos de cura. Uma vida reintegrada à natureza transforma e salva.

Para nossa sorte, o babalorixá Márcio de Jagun lançou recentemente o livro “Ewé – a Chave do Portal”, no qual aborda justamente a filosofia que nos ajuda a entender a construção social da doença e da saúde na civilização iorubá. Essa filosofia foi em grande parte preservada e vem sendo reelaborada nos terreiros. A obra deve contribuir para a recuperação de saberes e para uma retomada de vivências que promovam o bem-estar e conduzam à velhice, um valor essencial no candomblé.

“Ewé – a Chave do Portal” propõe esse entendimento amplo do conceito de saúde e doença conforme a filosofia iorubá, incluindo a ritualística do equilíbrio físico e espiritual por meio do elemento vegetal. De forma didática e bem fundamentada, o autor, ao longo das 800 páginas do livro, elenca a perspectiva dessa tradição sobre a relação entre o homem e a natureza. Ao dimensionar o poder da palavra para despertar o axé dos elementos, explica o surgimento mítico da doença e a potência de Ossayin, a divindade das folhas.

A visão colonizada, superficial e equivocada dos compositores de “Canto de Ossanha” denota a falta de conhecimento e a banalização da cultura do outro. A música pode contribuir e ser profunda em poucos versos, como bem demonstraram Gerônimo e Ildásio Tavares em “Salve as Folhas”, lindamente interpretada por Maria Bethânia. “Sem folha não tem sonho, sem folha não tem força, sem folha não tem nada” condiz muito mais com a forma como os iorubás e o povo do candomblé percebem o uso das ervas e como as reverenciam por meio do culto ao orixá Ossayin.

O ritual sagrado de transformação das folhas em remédios (sassanyin), os métodos de tratamento através da água e o princípio de reconhecimento das individualidades para posterior busca da cura são descortinados por Márcio de Jagun de forma primorosa, num livro rico em detalhes e fundamentos, que deveria ser adotado em faculdades de medicina não só pela possibilidade de estudos sobre esses saberes tradicionais, mas principalmente pela urgência de práticas humanizadas no campo da saúde pública.

 

A obra relaciona 520 plantas, descrevendo seus nomes populares e científicos e também no idioma iorubá. Além disso, explica didaticamente suas características e aplicações, tanto rituais, como curativas. O autor apresenta o resultado de suas pesquisas desenvolvidas durante anos, no Brasil e na África, elencando detalhes sobre a relação entre os orixás e as plantas.

Percorrendo tranquilamente os campos da antropologia, história e religião, com bases acadêmicas e fundamentos litúrgicos, Márcio de Jagun apresenta um trabalho inovador, cuidadoso e profundo sobre o tema. Não é a primeira nem a única obra sobre folhas, mas avança numa discussão decolonial e devolve aos povos tradicionais africanos seu protagonismo civilizatório e científico.

O babalorixá Márcio de Jagun é professor de filosofia iorubá na UERJ e de cultura e idioma iorubá na UFF, advogado, conferencista, escritor, autor dos livros “Orí – a Cabeça como Divindade”, “Yorùbá – Vocabulário Temático do Candomblé” e “Odù – os Iorubás e o Destino”, além de inúmeros artigos e pesquisas sobre o culto aos orixás. É membro do Conselho Estadual de Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa do Rio de Janeiro, pesquisador responsável pela inclusão do idioma iorubá no Inventário Nacional de Diversidade Linguística (INDL/IPHAN), proponente da Lei que tombou o idioma iorubá como patrimônio imaterial do Estado do Rio de Janeiro.

No Candomblé, saber é posto, e o livro de Márcio de Jagun demonstra um conhecimento profundo não apenas sobre as folhas, mas sobre o modo de vida, a visão de mundo e a filosofia do povo iorubá e dos terreiros.

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