Justiça

‘Minireforma trabalhista’ em curso no Senado torna Justiça do Trabalho inacessível

Depois de anos de desmontes, essa minirreforma consegue a proeza de precarizar ainda mais os direitos trabalhistas

As mudanças ampliam o poder e a liberdade do capital para determinar as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho
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Em meio ao desfile de fumaças da marinha brasileira no dia da votação da PEC do voto impresso, a Medida Provisória n. 1045 de 2021 (MP 1045/2021) foi aprovada na Câmara dos Deputados e aguarda votação no Senado Federal, atualmente, como Projeto de Lei n. 17/2021 (PL 17/2021).

As mais notáveis críticas ao texto aprovado consideram a inserção – de última hora e, inclusive, com a “colaboração” do próprio relator – de nada menos do que quatrocentas e sete emendas, desvirtuando por completo objeto e fim específicos do texto original da MP 1045/2021. Não se trata de uma “minirreforma” trabalhista, ao contrário de como vem sendo chamada, mas de uma ampla precarização de direitos sociais.

O cenário originário que já era ruim, autorizando redução de jornada e de salário por acordo individual durante o período de crise agravada pela pandemia do covid-19, ficou ainda pior com todas as outras matérias incluídas repentinamente no texto aprovado pela Câmara.

Ao lado da previsão de três programas diferentes de contratação precária (PRIORE, REQUIP e Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário), da permissibilidade de pagamento de horas extras típicas (mascaradas como “jornada complementar facultativa”) com adicional reduzido de 20% em vez dos 50% previstos na Constituição Federal, e dos óbices à atuação dos auditores fiscais do trabalho, também merecem firme reprovação as alterações propostas à gratuidade da justiça.

A redação que será votada no Senado Federal altera as regras não só da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), como também do CPC (Código de Processo Civil), dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais e da Justiça Federal. Caso seja aprovada, só terá direito à justiça gratuita a pessoa considerada pertencente à “família de baixa renda”, ou seja, aquela que tenha renda familiar mensal de até meio salário mínimo (R$ 550,00) por pessoa, ou renda familiar total de até três salários mínimos (R$ 3.300,00) por mês.

O membro de uma família que, por exemplo, seja o único provedor de uma casa com cinco pessoas, e que receba salário de R$ 3.500,00, não poderia ser beneficiário de justiça gratuita. Essa pessoa já não seria considerada “pertencente à família de baixa renda” pela lei e teria, portanto, plenas condições de arcar com eventuais custas e despesas processuais, o que não é minimamente razoável.

 

O critério objetivo pautado na renda familiar é muito prejudicial e pode, injustamente, deixar de fora pessoas que verdadeiramente não têm condições de arcar com custas e demais despesas processuais sem que isso signifique comprometer sua própria subsistência ou de sua família. Ainda que possa parecer razoável receber proventos superiores a R$ 3.300,00 mensais, esse requisito fixo desconsidera as circunstâncias concretas dessa família que pode, exemplificativamente, ter algum membro realizando tratamento de saúde que comprometa parcela considerável da renda familiar ou, mesmo, possuir dívidas relativas a serviços básicos, como água e energia elétrica, que venham a reduzir sobremaneira o valor real disponível à família.

Se aprovado o PL 17/2021, o requerente da justiça gratuita deverá comprovar o pertencimento à família de baixa renda, necessariamente, demonstrando o cadastro em algum programa social do governo federal. Dessa maneira, retira-se o benefício da gratuidade do alcance de diversas pessoas que, embora carentes e em situação de vulnerabilidade, não estão inscritas no CadÚnico e, em última análise, dá-se ao governo federal o poder de selecionar quem terá acesso à justiça ou não.

No caso específico dos que queiram reclamar seus direitos perante a Justiça do Trabalho, além dos critérios de renda familiar e de inscrição no CadÚnico, o PL 17/2021 propõe que seja beneficiário da justiça gratuita somente o trabalhador que recebia salário de até R$ 2.573,43 (40% do teto do INSS hoje) em seu último vínculo empregatício, ainda que já esteja desempregado, sem receber qualquer renda.

Corre perigo de sofrer ainda mais limitações, portanto, o benefício constitucional historicamente concedido aos trabalhadores, que os possibilita justamente o acesso ao Judiciário de forma integral e gratuita, no mais das vezes, logo após serem despedidos de seus empregos.

A maldade e a inconstitucionalidade da redação proposta vão ainda mais além. Há previsão expressa de que, ainda que se passe por todas as rígidas barreiras e que se consiga, enfim, acesso ao benefício da justiça gratuita, o beneficiário será condenado a pagar honorários ao advogado da parte contrária, caso perca sua ação judicial. Nesse particular, é importante ressaltar que a derrota em uma ação judicial advém de fatores variáveis e subjetivos, não significando que o trabalhador estivesse mentindo ou querendo se beneficiar ilicitamente.

Quem atua rotineiramente em processos trabalhistas sabe das dificuldades na produção da prova porque, muitas vezes, a testemunha ainda está com vínculo ativo na empresa e tem receio de sofrer reprimenda caso fale a verdade perante os juízes e juízas, omitindo ou “não lembrando” detalhes decisivos para a procedência da ação. Igualmente, não são raras as derrotas advindas da qualidade técnica dos profissionais que patrocinaram a causa ou, ainda, da simples resistência que determinados magistrados ou magistradas têm em relação à matéria discutida no processo.

O trabalhador, nesse sentido, ainda que beneficiário da justiça gratuita, seria penalizado a pagar os advogados de seus patrões por razões sobre as quais nem mesmo tem controle ou ingerência.

O cenário em caso de aprovação do PL 17/2021 será o seguinte: os empregados, por um lado, além de serem vítimas de fraudes trabalhistas, muito provavelmente e por compreensível medo de serem condenados a pagar os advogados de seus empregadores, não buscarão a devida reparação na Justiça do Trabalho.

Os empregadores, por outro lado, poderão fraudar leis trabalhistas e, muito provavelmente, nem sequer serão acionados na Justiça do Trabalho – sendo que esta, a seu turno, perderá paulatinamente a razão de existir, não pela ausência de conflitos a serem dirimidos, mas pela verdadeira impossibilidade de acessá-la.

Fica evidente, mais uma vez, quem se beneficiará da reforma que o governo Bolsonaro quer aprovar.

É preciso estarmos atentos e é urgente que pressionemos o Senado Federal para que não aprove o PL 17/2021. Não há qualquer necessidade de se retirar ainda mais direitos sociais no momento de crise em que vivemos.

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