Lado

A mão que protege bots ‘atendentes virtuais’ é negligente com assédios a trabalhadoras

Grandes empresas fazem campanhas de proteção à inteligência artificial, enquanto permitem ou contribuem para assédios a mulheres reais

Cartilha de Assédio Moral e Sexual da Procuradoria do Estado da Bahia. Foto meramente ilustrativa. Crédito: Fernando Vivas/GOVBA
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Chamou-me de idiota várias vezes durante o atendimento; disse que eu não deveria ter nem o ensino fundamental completo; pediu que eu enviasse uma foto minha, mesmo eu tendo deixado muito claro que aquele canal de atendimento era corporativo; perguntou se eu queria namorar com ele; perguntou se eu queria encontrá-lo em lugar mais reservado…

As frases acima transcritas, adaptadas ao contexto, poderiam ser ouvidas durante o expediente de qualquer trabalhadora, certo? Sim e não. Por incrível que pareça, elas fazem parte do dia a dia das bots atendentes do ramo financeiro e de varejo no Brasil.

Essa discussão repercutiu muito nas redes sociais, após a peça publicitária de um grande banco brasileiro, o Bradesco, informar que a sua atendente virtual, uma bot dotada de inteligência artificial chamada Bia, vinha sofrendo constantes assédios e agressões verbais por usuários do serviço. Em 2020, conforme informações do próprio banco, foram mais de 95 mil mensagens de natureza insidiosa recebidas por Bia.

Diante dessa absurda constatação, o programa, por trás da voz da Bia, passou a ser treinado para responder aos assédios de forma assertiva e contundente, rechaçando essas práticas odiosas. Infelizmente, esses relatos não são isolados, e outras robôs dotadas de inteligência artificial também passam por esse “constrangimento”. Há relatos dessa natureza que se dirigem a outras atendentes conhecidas, como a Nati (Natura), Lu (Magalu) e Alexa (Amazon).

Se substituíssemos as vozes femininas das atendentes de inteligência artificial por vozes masculinas, os assédios sofridos se dariam na mesma proporção e intensidade? Seguramente, essa resposta é negativa.

A divisão sexual do trabalho se revela de maneira cristalina, na escolha das empresas, ao colocarem vozes femininas por detrás do “trabalho de apoio” realizado pela inteligência artificial. Socialmente, essa prática importa na desvalorização do trabalho feminino e na disparidade salarial. Mulheres ainda ganham 30% menos comparando-se com os ganhos dos homens. Por outro lado, também temos que ponderar que muitas atendentes de call center – mulheres reais – não podem nem sequer responder à altura quando assediadas.

 

Se o assédio sofrido pelas bots denuncia o machismo, também escancara a situação de precarização do trabalho sofrida pelas trabalhadoras de plataformas, como a Uber. Apesar de não serem a maioria nos aplicativos, as plataformas oferecem às mulheres um fator a mais: um trabalho flexível, o qual permite que provenham pela subsistência econômica de suas famílias e exerçam seus trabalhos com a maternidade e o lar, em dupla jornada de trabalho, a qual une o corre-corre precarizado das plataformas e um trabalho não remunerado de cuidado. Essa tendência da ocupação feminina em postos de trabalhos flexibilizados faz com que as mulheres, historicamente, desempenhem trabalhos “uberizados” desde sempre, como coloca Ludmila Costhek em referência à precarização típica desses trabalhos da atualidade, que sempre despontou nas funções tradicionalmente femininas.

As denúncias de motoristas de plataformas que sofrem assédio por parte de seus passageiros mostram tendência dos apps em se eximirem da responsabilidade. Não há qualquer checagem quanto à veracidade dos dados fornecidos pelos passageiros em seus cadastros. Apesar de a Uber afirmar que segurança é a prioridade da empresa, essa máxima parece negada aos prestadores de serviços.

A plataforma também não fornece informações de como lidar com essas situações, cada vez mais frequentes, e, quando recebe os relatos, comumente afirma lamentar e diz que providenciará o bloqueio do usuário, sem fornecer qualquer suporte à mulher, a quem se refere como “parceira”, ainda que aparente ser essa uma relação unilateral por parte da trabalhadora.

Em relação às entregadoras, o relato não foge ao apresentado. Além dos assédios verbais e testes físicos sofridos por parte dos estabelecimentos e dos próprios entregadores, elas são apagadas em comparação aos homens, chegando a receber menos chamadas, mesmo quando apresentam melhores desempenhos. Existem também os aplicativos que se mantém essencialmente do trabalho feminino, como os de serviços de beleza e faxinas, já historicamente precarizados. Os bloqueios injustificados são comuns nessas plataformas: mulheres que ficam afastadas por questões de saúde ou por cuidados com a família podem passar dias bloqueadas da plataforma por mera liberalidade da empresa.

Em um posto de trabalho formal, se a mulher sofre assédio, há a responsabilização da empresa pelo fato. Por outro lado, em um trabalho uberizado, parece haver reforço do assédio sofrido. Ao passo que surgem ações em proteção aos algoritmos de bots femininos, esses mesmos algoritmos reforçam a discriminação contra mulheres reais e aumentam a precarização no trabalho uberizado feminino.

O feminino é atacado sob qualquer forma, por isso se deve proteger a essência da mulher contra o machismo. A mão que afaga e promove campanhas precisa também promover a dignidade das mulheres em seus postos de trabalho. O engajamento apenas é possível se abranger todas as mulheres e só haverá empoderamento quando todas forem respeitadas.

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