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Transparência no governo Bolsonaro: abismo entre discurso e prática

Cultura do silêncio e controle da informação pública revelam face autoritária do atual governo

Mourão durante coletiva em que pediu cautela nas investigações sobre Brumadinho. Crédito: Valter Campanato/ Agência Brasil Mourão durante coletiva em que pediu cautela nas investigações sobre Brumadinho.
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Um dos métodos para analisar a trajetória de um governante é verificar a relação entre aquilo que ele diz e aquilo que ele faz. Com pouco mais de um mês na Presidência do Brasil, é possível afirmar que, em determinados temas, Jair Bolsonaro (PSL) tem atuado no sentido de criar uma distância abissal entre aquilo que ele afirma e aquilo que ele implementa. Um desses temas é a transparência das informações públicas.

Ainda candidato, o programa de governo de Bolsonaro, na página 35, dizia que “transparência e combate à corrupção são inegociáveis”. Já este ano, com apenas uma semana de mandato, em 7 de janeiro, Bolsonaro deu a seguinte declaração: “Transparência acima de tudo. Todos os nossos atos terão que ser abertos para o público. E o que aconteceu no passado também. Não podemos admitir qualquer cláusula de confidencialidade pretérita. Esses atos e ações tornar-se-ão públicos”.

Afirmação aparentemente forte, porém, como rapidamente mostrou a realidade, essencialmente enganosa. Afinal, o principal ato do governo Bolsonaro sobre o tema – o Decreto 9.690, de 23 de janeiro de 2019 – vai, justamente, no sentido oposto, ao ampliar a opacidade no acesso às informações públicas.

Em síntese o decreto, que vem sendo apelidado de “decreto-mordaça” permite que ocupantes de cargos comissionados do governo federal, em sua maioria sem vínculo permanente com a gestão pública, possam determinar e classificar dados públicos como informações secretas ou ultrassecretas, garantindo a elas o sigilo por 15 ou 25 anos, respectivamente.

Além do efeito concreto de promover o distanciamento entre os cidadãos e o Estado, o decreto tem também um caráter simbólico negativo, ao ter sido assinado pelo presidente em exercício, general da reserva do Exército brasileiro, Hamilton Mourão. A permissão dada pelo vice-presidente para que servidores definam informações públicas como secretas ou ultrassecretas é ainda mais ampla do que na Ditadura Civil-Militar, uma sinalização de que a gestão Bolsonaro, assim como os governos ditatoriais, pretende se pautar pelo controle da informação pública.

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Durante o período ditatorial, o controle desse tipo de conteúdo foi estabelecido pelo Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos, assinado pelo também general Castelo Branco, em 1967. Pela legislação da época, só poderiam classificar informações como ultrassecretas o presidente da República, o vice-presidente, os ministros de Estado, o secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e os chefes do Estado-Maior da Marinha, Exército e Aeronáutica, o chefe do extinto Serviço Nacional de Informações. Além desses, poderiam classificar como secretos as autoridades responsáveis pela direção, comando ou chefia de órgãos da administração federal.

Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo, a partir do novo decreto, há atualmente no âmbito do governo federal aproximadamente 1.350 pessoas com o poder de definir uma informação como secreta, sendo que 449 dessas ainda podem determinar o grau ultrassecreto.

Desde 2012, com a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei nº 12.527/2011), que buscou constituir uma cultura de transparência e afirmar o caráter de bem público da informação pública, esse “obstáculo” entre os cidadãos e as informações públicas só poderia ser definido pelo presidente e vice-presidente da República, ministros de Estado e autoridades equivalentes, além dos comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas no exterior. Governadores e prefeitos também têm tal prerrogativa no âmbito de seus estados e municípios, respectivamente.

Como exemplo da importância da LAI para a cidadania e a democracia, um relatório da entidade não-governamental Artigo 19, publicado em maio de 2017, evidenciou a utilização da lei como mecanismo de acesso a informações públicas sobre, dentre outras questões, os impactos socioambientais na construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, o uso, volume e controle dos agrotóxicos no País e a lista de empresas que utilizam ou utilizaram trabalho análogo à escravidão.

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Desse modo, o que Bolsonaro e Mourão fazem é modificar e enfraquecer a LAI – legislação frequentemente utilizada por jornalistas, entidades da sociedade civil e pesquisadores para acessar informações públicas, sem necessidade de apresentação de justificativa –, negando um direito ainda mais amplo: o direito à informação, previsto na Constituição Federal de 1988 e em normativas e pactos internacionais.

Um marco nesse sentido é o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, ao determinar que “todos os seres humanos têm direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

40 anos após a promulgação da DUDH, em 1998, o Relatório sobre Promoção e Proteção do Direito de Liberdade de Opinião e Expressão da ONU estabeleceu que “o direito de procurar, receber e disseminar informação impõe uma obrigação positiva aos Estados de assegurar o acesso à informação, particularmente em relação às informações retidas pelos governos em todas as formas de armazenamento e sistemas de recuperação”.

O Decreto de Bolsonaro-Mourão aponta também para o enfraquecimento de qualquer perspectiva de combate à corrupção, demonstrando, mais uma vez, o abismo entre o discurso e a prática do atual governo. Sobre isso, a edição de 2018 do Índice de Percepção da Corrupção, elaborado pela organização Transparência Internacional, divulgada na última terça-feira, 29, mostrou que o Brasil caiu da 96ª para a 105ª posição, dentre 180 países, o pior resultado desde 2012.

Conforme declaração ao jornal Folha de S. Paulo, o diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão, acredita que, com o Decreto de 23 de janeiro, há uma tendência de agravamento desse cenário. Nas palavras de Brandão, “sem dúvida, o decreto vai na contramão do anseio da sociedade e das necessidades que temos de ampliar a transparência. E é uma ironia um decreto sobre transparência ter sido feito sem discussão, a portas fechadas”.

Assim, “com uma canetada” que faz relembrar os tempos de obscurantismo e repressão, vai se derretendo a aparência discursiva do governo Bolsonaro e se escancarando a essência igualmente autoritária, baseada na cultura do silêncio, em que tudo é sigilo até que se permita dizer o contrário.

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