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STF debate descriminalização do aborto, mas mídia não discute o tema

Enquanto a luta das mulheres chegou ao topo das discussões virtuais, imprensa fez cobertura pontual da maior audiência pública da história da Corte

Encerradas as audiências no dia 6, o tema desapareceu dos portais de notícia na Internet
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Por Camila Nóbrega, Olivia Bandeira e Vanessa Galassi*

Aborto. Palavra conhecida, que faz parte do cotidiano, mas circula no Brasil principalmente pela via do sussurro e da peregrinação em busca de escassa informação. Nos meios de comunicação, o termo costuma aparecer pela via da criminalização, nas páginas policiais, ou em tom de tragédia, em narrativas de casos individuais, por meio de entrevistas com rostos não revelados, vozes alteradas, envolto em tabus.

Desde a última sexta-feira, dia 3 de agosto, no entanto, o debate sobre a descriminalização do aborto ganhou espaço, principalmente na Internet, por meio de uma enxurrada de posts e hashtags nas redes sociais. Foi resultado da mobilização de mulheres de todo o país em torno da realização das audiências públicas convocadas pelo Superior Tribunal Federal (STF) para debater a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442.

A ADPF 442, protocolada pelo PSOL e pela ONG Anis, pede que o aborto feito nas 12 primeiras semanas de gestação não seja considerado crime. Dados recentes, como a Pesquisa Nacional de Aborto, de 2016, mostram que meio milhão de interrupções voluntárias foram praticadas no Brasil em 2015. Uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos de idade, teria realizado a prática, a quarta causa de mortalidade materna no país.

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Apesar dos números impressionantes, ainda há um abismo entre o que a criminalização do aborto representa na vida das mulheres brasileiras, especialmente pobres, negras e indígenas, e o espaço que o tema recebe na mídia tradicional. Nem a realização da maior audiência pública, em número de expositores no STF, nem o caso com maior número de amicus curiae oferecidos na história do Supremo pareceu justificar uma maior repercussão na imprensa.

Dois dos maiores jornais do país – o Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo – seguiram a linha de não chamar atenção para o tema. No momento exato em que redes sociais anunciavam o impacto das falas de diferentes especialistas na audiência, a cobertura era muito pontual. A página principal do site do Estadão, por exemplo, não tinha nenhuma notícia sobre o tema.

Na matéria principal, o jornal relata que conversou com quatro entidades que seriam ouvidas no STF. E resolveu iniciar as entrevistas com um representante da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB). Os considerados “a favor” da descriminalização do aborto vieram em segundo plano. Apenas uma mulher foi entrevistada, a última a ser mencionada.

No site da Folha, havia chamadas na página principal, mas o espaço informativo dedicado à questão ainda foi pequeno, tendo em vista a complexidade do debate. A descriminalização do aborto só foi tratada com destaque na versão impressa do jornal nos dias 6 e 7.

Na segunda-feira, trouxe três matérias e um artigo do blog #AgoraÉQueSãoElas, com argumentos pró-descriminalização. Os argumentos religiosos foram apresentados na edição desta terça. Uma matéria, entretanto, reporta com ironia os debates da audiência no STF, que contou com 60 depoimentos de diversas instituições: “Discussões sobre o aborto tem bruxas, lésbicas e ovos de tartaruga”, disse o jornal. O texto concluiu com a seguinte frase: “Faltaram imagens de hemorragia fatal causada pelo talo de mamona no útero”.

O Globo foi o único a publicar um editorial, no dia 3 de agosto, intitulado “Aborto deve ser tratado como questão de saúde”, em que se coloca a favor da descriminalização. O site do jornal criou uma área específica com diferentes textos relacionados à audiência pública, mostrando uma mudança de postura, neste caso, sobre o tema.

No dia 6, o Portal G1, do mesmo grupo, disponibilizou um link para acompanhar ao vivo a audiência – mas quase ao final da página principal, abaixo de assuntos como eleições, fake news e casos de violência, inclusive contra mulheres, em diversos estados.

Encerradas as audiências no dia 6, o tema desapareceu dos portais de notícia na Internet.

Invisibilidade também nas TVs

Na Globo, no domingo 5 de agosto, o Fantástico, um dos programas de maior audiência na TV, não tratou da questão. Pelo contrário, a revista eletrônica lançou a série “Fertilidade”, que mostra a história de mulheres que querem ter filhos e não conseguem por tratamento. No segundo dia de audiências, enquanto centenas de mulheres se concentravam na porta do STF já às 5h da manhã, como parte das ações do “Festival Pela Vida das Mulheres”, a repercussão foi ínfima.

No Bom Dia Brasil, da Globo, uma matéria de pouco mais de um minuto “informou” que a ADPF 442 era  sobre “legalização do aborto”, quando, na verdade, trata da descriminalização. No Jornal Hoje, a audiência foi tratada em 57 segundos de cobertura.

No Jornal Nacional, uma matéria mais longa, de 3 minutos e 27 segundos. Mas que foi finalizada com a frase: “Caberá à presidência do Supremo definir a data para que os 11 ministros decidam se aborto pode ou não ser praticado até a 12ª semana de gestação”. Novamente, prevaleceu a desinformação sobre a real proposta da ADPF.

Record e Bandeirantes sequer registraram o tema nos principais telejornais das emissoras. Ou seja, mesmo sendo líderes de audiência e, consequentemente, decisivas para a formação da opinião pública, as redes de TV abordaram de forma superficial ou simplesmente não falaram sobre os debates no Supremo sobre a ADPF 442. Nenhuma delas informou que, a cada dois dias, uma mulher morre vítima do aborto clandestino no Brasil; que a cada minuto uma mulher faz aborto no Brasil; que 67% das mulheres que já abortaram declaram ter filhos; e que 88% das mulheres que praticaram aborto declaram ter religião.

Em todas as reportagens analisadas, houve pouquíssimo espaço para a fala de sujeitos coletivos, como movimentos sociais de mulheres, organizações da sociedade civil, instituições de pesquisa acadêmica.

Perpetua-se, assim, uma trajetória de apagamentos das coletividades, que situam a discussão sobre a descriminalização do aborto num contexto de violências contra as mulheres, do racismo que impõe vulnerabilidades desiguais, da tentativa de controle do corpo e da vida de todas nós. Segue-se sem dar voz ao debate sobre o machismo e as desigualdades de gênero. 

Em 2005, uma pesquisa do Ibope encomendada pela organização Católicas pelo Direito de Decidir mostrou que, na época, quase metade dos brasileiros (48%) desconhecia até mesmo as situações em que o aborto pode ser feito legalmente. Nesse sentido, a mídia deveria desempenhar sua função social de questionar, trazer dados, qualificar o assunto.

A postura de evitar o tema ou de não confrontar a estrutura conservadora da sociedade brasileira continua privando a população de temas essenciais para a democracia. E assim o aborto permanece como caso de polícia, enquanto a vida de milhares de mulheres segue diariamente em risco.

* Camila Nóbrega, Olivia Bandeira e Vanessa Galassi são jornalistas e integrantes do Intervozes

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