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Sob domínio das empresas, desligamento analógico deixa milhões sem TV aberta

93% dos domicílios com TV deveriam estar prontos para receber o sinal digital; mas em SP, em março, apenas 89% entre os mais pobres estavam aptos

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Por Daniel Fonseca* e Marina Pita**

Na quarta-feira 21, o Grupo de Implantação do processo de Redistribuição e Digitalização de canais de TV (Gired) aprovou o desligamento total do sinal analógico de televisão em Goiânia e mais 28 municípios do entorno. E, diferentemente do que ocorreu em São Paulo, a representante dos interesses de SBT, Record e RedeTV!, Simba Content – joint-venture formada por essas empresas para negociar a venda dos sinais digitais das redes para os pacotes por assinatura – decidiu manter a distribuição dos canais para as empresas de TV por assinatura.

A disputa assimétrica (em capacidade financeira e influência política) que tem sido travada entre as operadoras de TV paga e a empresa Simba Content está longe de ser o único motivo para o verdadeiro “apagão” geral que ocorreu na região metropolitana de São Paulo no dia 29 de março (e que pode ocorrer em outras regiões do País), quando ao passar pelo chamado “switch off” analógico – quando os moradores passam a depender do decodificador digital para assistir à televisão aberta – mais de 1,5 milhão podem ter sofrido um abrupto corte do sinal analógico(1).

Para autorização do desligamento do sinal analógico de TV, o Gired estabeleceu como regra que 93% dos domicílios com TV devem estar prontos para receber o sinal digital. No entanto, pesquisa realizada pelo Ibope Inteligência, a pedido da Entidade Administrativa da Digitalização (EAD) – e obtida via Lei de Acesso à Informação pelo Intervozes – mostrou que, no mês de março (mês do desligamento do sinal analógico em São Paulo), das pessoas atendidas pelo Programa Bolsa Família ou por outros programas sociais e inscritas no CadÚnico, apenas 89% dos domicílios recebiam o sinal digital.

E, embora no final de abril o estudo tenha apresentado aumento do percentual de “digitalização” da população de 90% para 95% (dentro da regra), quando analisadas as classes C2, D e E, o percentual passou de 82% para 90% de digitalização, ficando abaixo do mínimo estabelecido pelo Art. 4º da portaria 378/2016.

O dado pode ser ainda mais assustador se levado em conta que, em março, momentos antes do desligamento do sinal analógico, apenas 82% das populações das classes C2, D e E estavam aptas a receber o sinal digital. Ou seja, nos dias anteriores ao fim da transmissão analógica na maior cidade brasileira (e em 38 municípios da região mais industrializada do país), 18% da população das classes mais empobrecidas (C2, D e E) não tinham condições de seguir acessando aquele que, talvez, seja único meio de entretenimento disponível no cotidiano. E, pela margem de erro de 3 pontos percentuais, o índice pode chegar a incríveis 21%.

A margem de erro também nos permite afirmar que se apenas 90% tinham condições de receber o sinal digital em março, 13% das casas podem ter ficado “às escuras” no ato desligamento do sinal analógico em São Paulo e entorno, percentual equivalente a cerca de 2,7 milhões de pessoas (2). E, mesmo em abril, quando teoricamente os esforços para ampliar o número de domicílios digitalizados já teria maior efeito, o percentual de domicílios aptos a receber o sinal digital estava no limite dos 95% estabelecido, ou seja, com a margem de erro para baixo (3), 8% da população poderiam estar sem sinal de TV aberta terrestre no momento do corte analógico.

Ao longo dos preparos para o switch-off analógico na cidade de São Paulo e nas localidades próximas, a EAD e o Governo Federal afirmaram que havia sido distribuído mais de 1,5 milhão de kits até o final de março de 2017 e que seriam fornecidos mais de 500 mil em dois meses (até o final de maio). Mas a verdade é que não houve garantias nem fiscalização do cumprimento dessa política de transição feita a toque de caixa.

Sem o kit, ficam sem acesso à TV aberta todos os domicílios que não tenham o conversor externo (chamado set-top box) ou o decodificar embutido no televisor (em geral, os aparelhos fabricados após 2010 já vêm adaptados). As residências em que há serviço de TV por assinatura ou antena parabólica continuam tendo acesso aos canais abertos, mas sob outras condições, já que não se trata da televisão aberta “terrestre” (a convencional, captada por antena comum).

As condições da TV por assinatura

Embora não exista relação direta entre o apagão geral vivido durante a transição para a TV digital e a polêmica do corte dos sinais de três dos principais canais de TV aberta (STB, Record e RedeTV), o caso em questão trouxe à tona os equívocos cometidos ao longo do processo de digitalização.

Em março, após o desligamento do sinal de TV analógico em São Paulo, a falta de um acordo entre a Simba Content e as operadoras de TV por assinatura (especialmente da NET/Claro e da Sky – já que Vivo está mais aberta a negociar) fez com que SBT, Record e RedeTV! – por estratégias das próprias emissoras – deixassem de constar em diversos pacotes de TV.

Isso acontece (ainda não foi resolvido) porque, enquanto na transmissão analógica as empresas de TV por assinatura eram obrigadas a carregar os canais abertos (regra do must carry, que obrigava as operadoras a incluir os canais abertos na programação) a partir da conclusão do processo de digitalização, emissoras e operadoras de TV por assinatura passariam a negociar o carregamento, com a possibilidade de cobrança sobre a oferta de produtos pelas emissoras de canais abertos, o que não acontecia antes, quando o canal era entregue gratuitamente, em troca da garantia de audiência.

Esta é uma batalha comercial de radiodifusores, já previamente afogados, contra empresas de telecomunicações ainda hipertrofiadas, que estão mais preocupadas com Netflix e Amazon do que com frágeis negociadores da Simba Content. Quando o desligamento chegar a cidades relevantes em que as redes tenham apenas emissoras afiliadas, a situação vai começar a apertar para os radiodifusores, porque as parceiras locais não vão querer perder a audiência da TV paga.

No caso de Goiânia e entorno, por exemplo, a decisão pela desistência de bloquear os sinais para as operadoras de TV paga foi vista pelo mercado como um recuo na estratégia de Silvio Santos (SBT) e Edir Macedo (Record) de pressão pelo pagamento de seus canais pelas operadoras de TV por assinatura. Mas o fato de apenas a Record ter emissora própria no local – sendo que SBT depende de emissora local e RedeTv! simplesmente não existe na capital e entorno – teve grande peso nesta decisão, demonstrando que esta chantagem dos radiodifusores não deve seguir por muito tempo.

Vale destacar que uma das estratégias das emissoras reunidas no Simba para forçar uma negociação com as operadoras de TV por assinatura é usar da pressão política. “As emissoras procuraram no final de maio o ministro Wellington Moreira Franco, da Secretaria Geral da Presidência, sinalizando com apoio ao governo, tanto no tom editorial quanto nas bases políticas no Congresso. Seriam cerca de 80 votos na Câmara.

Em ato contínuo, Moreira Franco teria procurado a Anatel para pressionar a agência em favor das emissoras. A estratégia seria impor às operadoras de TV por assinatura um desconto a ser concedido aos assinantes pelo fim do carregamento dos sinais abertos”, conforme matéria publicada no site Teletime. Ou seja, em tempos de pressão pela queda de Michel Temer, é preciso acompanhar o que acontece não apenas na tela da TV, mas também no âmbito das negociações sobre carregamento de programação, já que o mercado está mudando rapidamente.

Apesar disto, não é menos relevante, do ponto de vista da garantia ao direito à comunicação que, desde o desligamento do sinal analógico nas cidades de São Paulo e Brasília (onde houve o desligamento do sinal analógico em novembro de 2016), os assinantes de TV por assinatura deixaram de ter os três canais de TV aberta em seus pacotes. E aí, mais uma vez é possível detectar erros graves na transição do processo de digitalização. Isto porque dos 95% que estariam aptos a receber o sinal digital no final de abril, 33% segundo o estudo do Ibope Inteligência, utilizavam o serviço de TV por assinatura para o recebimento do sinal. Deste percentual de domicílios que utilizam os serviços de TV por assinatura, não estão destrinchados quantos poderiam receber os sinais dos canais de TV abertos digitais mesmo quando estes deixassem de estar no pacote.

Como não existem dados sobre quantos destes assinantes mantém conversor embutido (as chamadas TV de tela fina), que permitiria a recepção do sinal de TV digital mesmo sem a mediação de uma empresa de carregamento de conteúdo (Net/Claro, Vivo e Sky) ou com conversores externos (comprados para este fim), na prática, isto implica dizer que, aqueles que acessavam os canais abertos por meio da TV paga ficaram sem este acesso desde o desligamento. E assim, essas pessoas, potencialmente tiveram seu direito à diversidade e pluralidade nas comunicações significativamente afetado.

O buraco é mais em cima (no “UHF alto”)

A disputa comercial entre as emissoras de TV e as operadoras de TV por assinatura não deve encobrir os erros deste processo de transição da TV digital, erros estes que devem ser atribuídos ao Estado brasileiro, que por meio do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), deveria garantir condições razoavelmente equitativas para uma parcela considerável da população não sofresse um “apagão” analógico, ficando sem acesso à TV aberta.

Ora, acontece que existem interesses alheios ao direito humano à comunicação em jogo desde que o todo o processo de implementação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) se iniciou, ainda no ano de 2003, quando as instâncias diretivas foram instauradas. A maioria delas ocupadas, ou mesmo dirigidas, por representantes de empresários (ou eles próprios). O Comitê de Desenvolvimento, criado pelo Decreto nº 3.901/03, na verdade, acabou engolido pelo “Fórum SBTVD”, previsto no Decreto nº 5.280/2006 e formado por empresários da radiodifusão, de fabricantes de equipamentos de recepção, de transmissão e indústrias de software.

A privatização definitiva e sem rodeios da transição para o digital, no entanto, se consolida com o edital 002/2014-SOR/SPR/CD-Anatel, que abriu, em setembro de 2014, a licitação da chamada “faixa de dos 700 MHz” (698 MHz a 806 MHz), também conhecida como “UHF alto”, porque está localizada entre os canais 52 e 69. Nesse processo de concessão, o governo abriu caminho para que as operadoras de telefonia pudessem oferecer o serviço móvel 4G numa faixa do espectro bem mais valorizada, porque permite maior abrangência de cobertura. Tudo sob o controle empresarial.

Coincidentemente, TIM, Vivo (Telefônica), Claro (América Móvil, também proprietário da NET e da Embratel) arremataram, cada uma, um lote com abrangência nacional, sem ágio relevante; a Algar Telecom ficou com uma pequena área no Sudeste, onde atua. Já o lote que seria ‘destinado’ à Oi ficou como sobra, porque a empresa, em crise, desistiu da concorrência. Por obra do acaso, megaempresas concorrentes diretas apresentaram propostas bastante similares, mas sem o menor risco de comprometer o nicho uma da outra.

O mais relevante é que o martelo não valeu apenas para as faixas de radiofrequência. O edital da licitação garantia que, após o “leilão dos 700 MHz”, as proponentes vencedoras tinham o direito de compor o Gired (também criado no ato) em parceria equitativa com os radiodifusores e de criar a EAD, que, na prática, tem funcionado desde então como uma espécie de holding com diversas subsidiárias operacionais com funções específicas.

O Gired é coordenado pelo presidente da Anatel e tem também a participação de um representante do MCTIC. No entanto, com oito integrantes empresários (quatro de cada setor), a palavra do poder público só pesa mesmo na definição de prazos – e, mesmo assim, tal poder tem uso moderado ou mesmo negligenciado pelo ministro Gilberto Kassab e também pelos anteriores, sempre interessados em ficar bem com provedores de poderes simbólico e financeiro.

As negociações que se dão nas reuniões do Gired são absolutamente ilustrativas da relação de cumplicidade vigilante entre radiodifusores e de resignação negligente e conivente por parte da Anatel e do ministério da área. E a EAD, que era para ser o “braço operacional” do Gired, acaba tendo relevante ascendência sobre as decisões tomadas pelo grupo que, em tese, deveria coordená-la. Com a omissão do executivo (Anatel e MCTIC), foi o TCU que acabou tomando a iniciativa de investigar a licitação da faixa de 700 MHz.

Assim, o que se vê atualmente é uma política a toque de caixa do governo para liberação da faixa de 700 Mhz, antes usada para a transmissão de TV analógica e que agora passa a ser de uso pelas operadoras de telefonia móvel para transmissão do sinal 4G. As próprias empresas de radiodifusão mantêm a persistência em cumprir cronograma, que aponta o ano de 2023 para a conclusão do processo de digitalização da TV aberta – que se iniciou oficialmente em dezembro de 2007. Tudo isto objetivando “limpar” o espectro e viabilizar o 4G o mais breve possível.

Embora tenha sido revisto inúmeras vezes desde 2006, a cada tentativa de adiamento do fim das transmissões analógicas, fazem-se contorcionismos em números de kits efetivamente distribuídos, experimenta-se a elasticidade das margens de erro estatísticas e mesmo se induzem projeções futurólogas sobre os domicílios habilitados para o digital para fazer a transição no afogadilho. Tudo em nome dos interesses de cada setor envolvido na transição. Propagandeia-se, por um lado, uma grande transformação na forma de consumir televisão, mas a realidade é que, mesmo depois de totalmente consolidada no país a digitalização não deve gerar grandes avanços para a garantir o direito à comunicação dos brasileiros para além da melhoria da resolução de sons e imagens.

(1) Segundo dados da própria aferição do Ibope as classes C2 D e E somam 36% da população do cluster (conjunto de municípios envolvido), que tem, ao todo, quase 21 milhões de habitantes. Ou seja, das cerca de 7,5 milhões de pessoas que integram esses três segmentos, mais de 1,5 milhão podem ter sofrido um abrupto “apagão analógico” no dia 29 de março deste ano.

(2) Consolidado no final de 2015, ainda que tenha havido críticas e debates em torno disso até outubro de 2016, o critério-base utilizados pelo Gired consideram a margem de erro da pesquisa (3%) em favor do atingimento.

(3) Somente agora, no final de junho, passados quase 90 dias do switch-off analógico na maior conurbação do país, a pesquisa mais recente do Ibope apurou que 99,6% dos lares paulistanos e entorno acessam a TV digital.

* É jornalista, doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-Pós/UFRJ) e membro do Intervozes;
** É jornalista, membro da coordenação executiva do Intervozes.

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