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Senado vai decidir às cegas futuro da conexão dos brasileiros

Se aprovada, a chamada ‘PL das Teles’ pode beneficiar algumas poucas operadoras e deixar de lado o interesse público

Senadora Daniella Ribeiro (PP-PB). Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado Plenário do Senado Federal durante sessão deliberativa ordinária. Em discurso, à tribuna, senadora Daniella Ribeiro (PP-PB). Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
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*Por Marina Pita

Nesta semana, a senadora Daniella Ribeiro (PP-PB) apresentou seu relatório acerca do projeto que visa alterar a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) e que ganhou o apelido de “PL das Teles”, por beneficiar algumas poucas operadoras e deixar de lado o interesse público – tudo muito bem disfarçado de iniciativa para ampliar o acesso à banda larga a todo País. O PLC 79/2016 é bastante complexo e, se aprovado como a senadora Daniella propõe, resultará no repasse de bilhões de reais do Tesouro às empresas, além de entregar em definitivo para as operadoras espectros de frequência que valerão ouro com o início da instalação do 5G.

Para permitir que os parlamentares conheçam seus reais impactos e se debrucem com a seriedade necessária acerca dessa proposição, antes de darem seu voto, organizações como a Coalizão Direitos na Rede, da qual o Intervozes participa, trabalharam para garantir que ao menos uma audiência pública sobre o tema ocorresse no Senado. O requerimento, solicitado pelo gabinete do senador Rogério Carvalho (PT-SE), foi finalmente aprovado em agosto e a audiência chegou a ser marcada para esta terça-feira 2, mas foi cancelada, sem que haja qualquer previsão de nova data.

Basta uma rápida conversa nos gabinetes da Casa para ficar evidente que quase nenhum dos parlamentares, independentemente de sua matiz política, sabe do que se trata o texto, a ponto de votar de maneira consciente no relatório em questão. Vamos tentar explicá-lo então.

O centro do PLC 79

O principal objetivo do chamado PL das Teles é alterar o regime de concessão para o de autorização na prestação do serviço de telefonia fixa. Considerado ultrapassado e não mais essencial para a garantia do direito à comunicação e do acesso à informação da população, não caberia mais ao Estado mantê-lo como prioridade das políticas públicas de telecomunicações. Tampouco interessa aos agentes privados que o exploram, já que não mais proporciona os benefícios econômicos esperados e que pode, inclusive, levar à deterioração do complexo quadro de endividamento da Oi.

É razoável e oportuno, portanto, que se encerrem antecipadamente os contratos de concessão entre a União e operadoras como a Telefônica e Oi, cujo termo final está previsto para dezembro de 2025, assegurando à população que ainda depende da telefonia fixa – inclusive dos orelhões – siga atendida. O PLC 79, entretanto, faz isso dando de presente a infraestrutura pública da União, usada pelas concessionárias para prestar o serviço, para as empresas que o exploram, apenas trocando o valor desses bens, mais o saldo das obrigações ainda não cumpridas pelas concessionárias, a título de indenização “ao Estado”, por investimentos em sua própria rede privada.

É uma proposta indecente. Ainda que haja acordo de que é preciso antecipar o fim dos contratos de concessão da telefonia fixa, isso precisa ser feito direito, porque é por essa mesma infraestrutura pública que é ofertado outro serviço de telecomunicações essencial nos dias de hoje: a conexão à Internet. Um grande risco envolvido nesse toma-lá-dá-cá, por exemplo, é a subvaloração desse patrimônio público, que já é alvo de uma ampla campanha de desinformação das operadoras para tentar convencer a população e os parlamentares de que a infraestrutura ligada ao sistema de telefonia fixa não vale nada. Mas isso não é verdade.

De acordo com o CETIC.br, do Comitê Gestor da Internet no Brasil, a conexão à Internet utilizando a tecnologia DSL (rede de cobre, da telefonia fixa) ainda representa percentual significativo das conexões domiciliares do País. Adicionalmente, ainda que o usuário não saiba, as redes de cobre suportam as conexões tanto na rede fixa quanto na móvel. Independente da tecnologia para o usuário final, boa parte do escoamento do tráfego em rede de longa distância se dá nas redes de cobre. Concretamente, essa infraestrutura responde por mais de 45% do tráfego de dados das empresas concessionárias Oi e Telefônica. Além do valor da rede, deve-se contabilizar também o valor dos dutos (obras de engenharia civil distribuídas por todo o território nacional), além de milhares de imóveis, em áreas nobres de capitais como Rio de Janeiro e São Paulo.

Só que, além de alterar a LGT para desobrigar a devolução desses bens para o Tesouro, o PLC 79 estabelece que apenas a porção das redes usada atualmente para a telefonia fixa deve fazer parte do cálculo da indenização que o Estado deve receber. Ou seja, prédios e dutos não serão contabilizados, o que significa, na prática, reduzir, em centenas de milhões de reais, o recurso que deveria ser disponibilizado para ampliar a infraestrutura de banda larga nas áreas mais deficitárias do País.

Concorrência desleal, concentração e ausência de critérios para investimentos

Não bastasse o Estado perder sua capacidade regulatória sobre uma infraestrutura pública, o PLC 79/16 determina que os recursos que seriam da União passem a ser usados exclusivamente pelas atuais concessionárias da telefonia fixa – e que em breve deixarão de sê-lo se o PLC for aprovado. Outros grupos empresariais que poderiam acessá-los não o poderão, ampliando ainda mais a concentração do setor e facilitando a criação de oligopólios. Se efetivada, tal entrega representará inclusive uma violação ao art. 37 da Constituição Federal, que estabelece, para casos como este, a obrigatoriedade de licitação, para a garantia de condições isonômicas no mercado de telecomunicações.

Hoje, existem cerca de 10 mil pequenas e médias empresas, não vinculadas aos grupos das concessionárias do serviço de telefonia fixa, atuando em pequenas cidades do interior para oferecer conexão à Internet. Trata-se de um segmento pujante que, em 2018, foi responsável por mais de 90% dos novos usuários de banda larga fixa. Os provedores regionais também são o segmento que mais cresce em oferta de fibra óptica, com 63% das adições de novos usuários. Em outras palavras, são os provedores regionais que mais têm contribuído para o desenvolvimento social por meio da disponibilização do acesso à Internet nos rincões do País e mais têm proporcionado melhoria na qualidade das conexões ao liderarem as adições de usuários em fibra óptica.

O PLC 79/2016 ignora este universo de pequenos e médios empresários, que deveriam poder disputar mercado com as concessionárias de telefonia fixa para ampliar, de fato, a conectividade no País, gerando oportunidades de emprego e renda em todo o Brasil. Se pelo menos houvesse no PLC uma obrigação de que os investimentos a serem feitos pelas operadoras ocorram em redes de transporte de alta capacidade (backbone e backhaul), a serem ofertadas no atacado conforme regulação da Anatel, outros agentes econômicos, e não apenas as concessionárias de telefonia fixa, também poderiam se beneficiar dos recursos da União. Tal simples previsão garantiria benefícios para todo o setor e aceleraria a conexão de domicílios. Mas não é isso que o texto diz.

Os termos do PLC 79/2016 também são insuficientes para direcionar a aplicação desses recursos pelas operadores em lugares que efetivamente demandam investimentos. O projeto de lei limita-se a estabelecer que “os compromissos de investimento priorizarão a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades, nos termos da regulamentação da Agência”. Tais termos são absolutamente insuficientes, a começar pelo termo “priorizarão”, especialmente diante do risco de captura da Anatel pelas teles e seus interesses. Tampouco há no PLC prazos ou previsão de sanções diante do não cumprimento dessa diretriz.

A simples previsão de investimento de acordo com o Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações, desenvolvido pela área técnica da Anatel, e revisado anualmente, daria maior segurança de que tais recursos teriam como prioridade o atendimento às parcelas mais necessitadas da população. Também o estabelecimento da priorização para investimento nas regiões mais deficitárias de infraestrutura e um prazo de cumprimento das novas obrigações dariam maior segurança de que o interesse público seria alcançado. Mas o PLC 79 não traz nada disso.

Entrega perpétua dos espectros de frequência e congelamento do FUST

A atual redação da LGT permite a renovação do direito de uso de radiofrequência “por uma única vez” para cada empresa. Ao término do uso da radiofrequência, a respectiva faixa deve ser devolvida ao Poder Público e uma nova licitação deve ocorrer. A Anatel arrecadou cerca de 30 bilhões de reais nas licitações de radiofrequências desde 1997.

Com a mudança proposta pelo PL das Teles, as empresas que prestam o Serviço Móvel Pessoal (telefonia móvel) poderão renovar este direito de uso indefinidamente, criando uma espécie de autorização perpétua para utilização do espectro. Ao entregar o espectro de forma perpétua a algumas empresas, o PLC força a União a abrir mão de futuras arrecadações, favorecendo entes privados em detrimento do erário. Além disso, como não há regras para a garantia de acesso às frequências em um possível mercado secundário, em que as detentoras do espectro poderiam repassá-lo a outras, as empresas poderiam simplesmente barrar a entrada de competidores mesmo sem fazer o uso ótimo do espectro.

Por fim, o PLC 79/2016 altera a Lei Geral de Telecomunicações para isentar as empresas de radiodifusão do pagamento da contribuição ao Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), essencial para garantia dos direitos dos brasileiros e para estimular a economia nacional. Trata-se de um sério equívoco, justamente num momento em que a Anatel consolidou sua proposta (via anteprojeto de lei a ser enviado em breve pelo Executivo ao Congresso) para permitir o uso dos recursos do Fundo na expansão do acesso à banda larga, visando o atendimento de todas as regiões hoje desconectadas ou dependentes de infraestrutura precária.

E mais, há o risco real de que a aprovação do PLC 79 leve à perda do objeto na contribuição ao Fundo, que atualmente, conforme a Lei Nº 9.998/2000, só pode ser aplicado na universalização da telefonia fixa. Assim, além de todos os riscos acima elencados, o PL das Teles pode acabar com um dos poucos recursos para garantir a cidadania dos brasileiros em tempos de Internet.

O Senado, por óbvio, poderia alterar a proposta e garantir um modelo de fim de contrato que amplie a concorrência e permita o investimento em banda larga nas áreas necessitadas. Mas há um impedimento silencioso – e bastante autoritário – do governo federal e de poucas empresas de que os senadores o façam. Exigem que o texto seja votado como está. Uma ordem a ser seguida às cegas, que não traz qualquer benefício ao País.

*Marina Pita é jornalista, especialista na cobertura do setor de telecomunicações e coordenadora de relações institucionais do Intervozes.

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