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Relator da ONU reforça necessidade do direito à reunião e à associação

Para Clément Nyaletsossi Voule, sem direito de manifestação pacífica não há sociedade aberta e democrática

23 pessoas foram condenadas pelas manifestações de junho de 2013
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Por Olívia Bandeira*

No último dia 17 de julho, 23 manifestantes que participaram, entre 2013 e 2014, de protestos no contexto da Copa do Mundo foram condenados pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a penas que variam de 5 anos e 10 meses a 7 anos de prisão em regime fechado.

Na sentença do juiz Flavio Itabaiana, observa-se a interpretação de que os manifestantes estariam desrespeitando os poderes constituídos ao realizarem os protestos.

As tentativas de restringir a liberdade de expressão e de criminalizar a livre manifestação e a ação dos movimentos sociais têm crescido no Brasil. Entre outubro de 2016 e setembro de 2017, a campanha Calar Jamais!, que recolhe relatos de atentados à liberdade de expressão, recebeu mais de 70 denúncias que abrangem violações como violência e censura contra jornalistas, comunicadores sociais e meios de comunicação; censura a manifestações artísticas; repressão a protestos, manifestações, movimentos sociais e organizações políticas; repressão e censura nas escolas; e censura nas redes sociais.

Essas violações contrariam a Constituição Federal e diversos documentos internacionais sobre o tema. Em relação ao direito de protesto e associação, as violações apontadas contrariam a resolução 15/21 da ONU, publicada em 30 de setembro de 2010.

Essa resolução estabelece os parâmetros de trabalho do relator da ONU para a liberdade de reunião pacífica e de associação, cargo atualmente ocupado por Clément Nyaletsossi Voule, que esteve no Brasil na mesma semana em que os 23 manifestantes foram condenados.

Embora não tenha se manifestado especificamente sobre a condenação, por estar em visita acadêmica e não visita oficial ao Brasil, Voule afirmou que “sem direito de manifestação pacífica não há sociedade aberta e democrática”.

Para o relator, o direito à reunião e à associação são fundamentais para a luta por outros direitos, como educação, saúde e o direito à vida, e o Estado precisa assegurá-lo sobretudo para as minorias que em geral têm suas vozes silenciadas, como mulheres, a população LGBT, negros e comunidades indígenas.

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As afirmações foram feitas em encontro com representantes de movimentos sociais realizado em São Paulo, no dia 20 de julho. Na reunião, organizada pelas entidades Artigo 19 e Conectas, o relator da ONU recebeu diversas denúncias de militantes de direitos humanos.

Dentre elas, do fotógrafo Sérgio Silva que em junho de 2013 perdeu o olho esquerdo depois de ser atingido por uma bala de borracha e que teve seu pedido de indenização ao governo do estado de SP negado pelo Tribunal de Justiça; da jornalista Juliana Gonçalves, uma das articuladoras da Marcha das Mulheres Negras, que cobrou do relator da ONU uma posição mais firme em relação à negligência do Estado brasileiro com as vidas dos marginalizados; e de Andreia Neiva, do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens, que destacou a necessidade de divulgar a violência contra os trabalhadores rurais que acontecem no Brasil.

Viajando por diversos países ao redor do mundo, Clément Voule percebeu como os governos têm utilizado de uma série de mecanismos condenados pelos padrões internacionais para coibir manifestações, como aplicação desigual e seletiva de leis, uso excessivo da força policial, a estigmatização de lideranças e o uso da Internet para o controle dos movimentos sociais.

No Brasil, o projeto de lei nº 9.604/2018 pretende alterar a Lei Antiterrorismo (lei 13.260/16), possibilitando, por exemplo, que a ocupação de imóveis urbanos ou rurais, instrumento legítimo de luta de movimentos como os de sem terra, sem teto, estudantes, indígenas e quilombolas, seja considerada um ato terrorista.

Também tramita no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário 806.339, que exige autorização prévia para a realização de manifestações. De acordo com os padrões internacionais, o aviso prévio não pode ser confundido com autorização prévia para que um ato ocorra ou não.

A mídia e a criminalização do direito à manifestação

Como apontaram diversos representantes de movimentos sociais na reunião, entre eles o Intervozes, ao relator da ONU, a mídia brasileira tem papel de destaque no processo de criminalização das manifestações e dos movimentos sociais.

Isso se evidencia quando a mídia tradicional privilegia fontes consideradas oficiais, como a polícia e o ministério público, e dá pouco espaço para os argumentos da defesa.

O caso da condenação dos 23 manifestantes de junho de 2013 é exemplar. Ao anunciar a condenação, em matéria de 17 de julho de 2018, a Folha de S. Paulo deu amplo espaço aos argumentos da denúncia e só ao final da matéria mostrou argumentos da defesa. Em nenhum momento o direito à manifestações ou protestos foi mencionado.

Matéria do G1 seguiu o mesmo padrão. Além de trazer um ponto de vista da defesa apenas ao final da matéria, trouxe fotos que mostram manifestantes usando máscaras e fazendo barricadas, definindo os atos como “confusão”.

Mas a mídia já havia condenado os manifestantes muito antes da sentença do juiz. Às vésperas da Copa do Mundo de 2014, quando o mesmo juiz havia decretado a prisão preventiva dos manifestantes, o G1 anunciara a prisão com uma manchete que afirmava o argumento da polícia: “Sininho e outros ativistas presos planejavam ataques no Rio, diz polícia”.

O uso de fontes do poder político, em detrimento das vozes da população, é comum nas coberturas deste tipo. Como mostra o relatório Vozes Silenciadas, produzido pelo Intervozes, que analisou 964 matérias do gênero notícia/reportagem publicadas nas versões online dos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo, nos primeiros 19 dias do mês de junho de 2013, “47% de todas as fontes citadas são autoridades públicas/políticos, enquanto os manifestantes, organizações civis, movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores ficam, juntos, com a parcela de apenas 18% das falas”.

Além disso, a mídia tradicional atua desqualificando os atos e manifestações como “violentos”, taxando os manifestantes de “vândalos”.

Na cobertura online da Folha de S. Paulo sobre os protestos de 2013, por exemplo, as fotografias e as legendas que utilizam palavras como “destruição”, “invasão”, “depredação” e “organização criminosa” legitimam a ação violenta da polícia expressa nas manchetes: “Policiais militares poderão voltar a usar balas de borracha durante protestos em São Paulo” e “Cabral elogia ação da PM e prega ação contra ‘black blocs’ no Rio de Janeiro”.

Como disse Camila Marques, advogada da Artigo 19, ao relator da ONU, “o governo e a mídia invertem o conceito de pacífico, qualquer coisa que sai da normalidade é considerada violenta e os manifestantes são tachados de vândalos e perigosos. Muitos vezes ações mais diretas são legítimas e estão contempladas no direito de protesto”.

A ausência de um debate mais profundo sobre as causas das manifestações que tomaram o Brasil a partir de 2013 assim como sobre a importância da liberdade de manifestação e de protesto em qualquer sociedade democrática é um sintoma de um sistema de mídia altamente concentrado, que não corresponde à pluralidade de vozes da sociedade brasileira.

A liberdade de expressão e de manifestação são direitos legítimos garantidos na Constituição Brasileira e em tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.

Ao criminalizar as manifestações e os protestos a mídia colabora com o silenciamento da população que tenta lutar por seus direitos mais básicos e contribui para a legitimação da violência institucional contra os movimentos sociais no país que mais mata defensores de direitos humanos na América.

* Olívia Bandeira é jornalista, doutora em Antropologia e integra o Conselho Diretor do Intervozes.

 

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