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Ratinho atira contra a democracia e viola a Constituição

Em rádio de sua propriedade, o apresentador sugeriu a instalação de uma ditadura militar. Não é de hoje que Ratinho defende autoritários

Fotos Públicas: Gabriel Cardoso/SBT - Fotos Públicas
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Por Iara Moura

Na mesma semana em que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu manter a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL/RJ) por ter publicado vídeo com ofensas a ministros do STF e em defesa do AI-5, o empresário e concessionário de radiodifusão Carlos Massa, o Ratinho, também disparou contra a democracia.

Durante o programa A Turma do Ratinho, transmitido pela rádio Massa FM na última quarta-feira 17, o apresentador fez apologia à intervenção militar e elogiou o regime totalitário do arquipélago asiático de Singapura, onde instituições democráticas, entre elas a própria imprensa, são silenciadas e reprimidas.

No Brasil, onde Ratinho explora um serviço de radiodifusão lucrando às custas do sofrimento alheio, a situação de jornalistas – acuados, perseguidos e silenciados pelo próprio Governo Federal e pelo presidente Jair Bolsonaro – está longe de ser de livre exercício da profissão, conforme estabelece a Constituição Federal.

Ainda assim, as garantias colocadas pela Carta Magna, dentre elas a liberdade de imprensa e o respeito às instituições e à independência dos Poderes, permitem minimamente que os cidadãos tenham à disposição instrumentos para se defender da censura, buscar e difundir informações, fiscalizar e denunciar a atuação dos governantes. Ainda pode-se, embora com cada vez mais dificuldade no nosso País, apurar e divulgar notícias que não agradam o chefe maior da Nação e que contrariam os interesses inclusive do próprio Poder Judiciário e das Forças Armadas.

No Brasil, não fossem os veículos de imprensa, não teríamos informações diárias atualizadas sobre o número de infectados e óbitos de vítimas da Covid-19, nem mesmo seríamos informados sobre o andamento da vacinação, já que em junho de 2020 o governo federal tirou do ar esses dados.

O paradoxo, entretanto, é que o apresentador utiliza-se das garantias constitucionais e infralegais para, em posse de uma concessão de radiodifusão, atirar contra essas próprias garantias. Ratinho é dono do Grupo Massa, que detém as retransmissoras do SBT TV Iguaçu, TV Cidade, TV Naipi, TV Tibagi e TV Guará, todas no Paraná. Possui ainda as rádios Massa FM e Massa FUN.

Vale lembrar que rádio e TV são, no Brasil, concessões públicas e que, por isso, devem estar de acordo com normas, entre leis brasileiras, dispositivos multilaterais e instrumentos de autorregulação do campo da comunicação de massa. Entre eles, o princípio basilar da independência dos Poderes, não podendo fazer ameaças ou constranger o pleno funcionamento destes, como fez, no entendimento do STF, o deputado Daniel Silveira.

Tal paradoxo só é possível porque vivemos no Brasil uma total ausência de regulação da mídia. Neste cenário, apresentadores de programas policialescos e de entretenimento agem como verdadeiros donos da bola e teimam em não aceitar que estão usando o campo com fins estabelecidos e devem ser submetidos às regras da partida. Atuam como se estivessem acima da lei e seguem impunemente lucrando com um modelo de negócios baseado na violação de direitos, na incitação à violência, no ataque às instituições democráticas.

E isso não é um debate puramente legal ou moral. Trata-se de um modelo de negócio lucrativo. Basta observar a quantidade de anúncios publicitários de empresas privadas durante as três horas de transmissão do programa Turma do Ratinho: são dezenas, responsáveis por sustentar a produção e veiculação do programa. Mas a sustentabilidade desse tipo de programa não é responsabilidade só da iniciativa privada.

A título de exemplo, segundo apurou a revista Época, o governo Bolsonaro pagou 268,5 mil reais ao televisivo Programa do Ratinho, veiculado no SBT, para fazer merchandising e defender a reforma da Previdência, entre fevereiro e março de 2019. Somente em junho de 2019, auge da tramitação da reforma da Previdência, o presidente foi três vezes ao canal participar de programas de entretenimento, dentre eles o do Ratinho, onde defendeu a proposta e atacou adversários políticos, além de apregoar a inocência do ministro Sérgio Moro no caso da Vaza Jato.

Não é de hoje que a relação entre veículos de mídia e presidentes autoritários é próxima. Assim que iniciou suas operações, o SBT passou a exibir o quadro “A Semana do Presidente”, inserido aos domingos na grade de programação da emissora, durante o Programa Sílvio Santos. O quadro fazia um relato da agenda semanal do presidente da República – naquele momento, cargo exercido pelo general João Batista Figueiredo, o último presidente da ditadura civil-militar que governou o Brasil por duas décadas.

O oferecimento do espaço era uma forma de retribuir ao governo militar a escolha do SBT para a concessão pública de televisão. É de conhecimento geral também a relação perniciosa entre a Rede Globo de Televisão e o regime autoritário encabeçado pelos militares, tendo sido reconhecida pela própria emissora em editorial no Jornal Nacional que foi ao ar em agosto de 2013.

Voltando ao Ratinho, não é a primeira vez que o apresentador e concessionário utiliza-se de canais de rádio e TV como se estivesse acima da lei. Em 22 de fevereiro de 2020, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou o apresentador a pagar uma indenização de 150 mil reais para uma família exposta de forma vexatória em seu programa televisivo, no qual exibia uma criança de 14 anos em trajes de dormir sem a permissão dos pais. Segundo o entendimento do STJ, o apresentador “estimulou o constrangimento público imposto à família”.

Fazer alusão a um golpe militar é uma afronta ético-profissional e moral gravíssima, que configura ainda uma infração à Constituição, o que poderia justificar a perda da concessão. Como destacou em nota o Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações (FNDC), “não se trata de liberdade de expressão. Defender ruptura democrática é crime enquadrado na Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83), na Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/50) e no próprio Código Penal (artigo 287)”.

Nas palavras do ministro Alexandre de Moraes, ao referir-se ao deputado Daniel Silveira: “Não existirá um Estado democrático de direito sem que haja Poderes de Estado, independentes e harmônicos entre si, bem como previsão de Direitos Fundamentais e instrumentos que possibilitem a fiscalização e a perpetuidade desses requisitos. Todos esses temas são de tal modo interligados, que a derrocada de um, fatalmente, acarretará a supressão dos demais, trazendo como consequência o nefasto manto do arbítrio e da ditadura, como ocorreu com a edição do AI-5 (…).”

A ver se no caso de Ratinho as instituições incumbidas da defesa da democracia agem, segundo suas prerrogativas, em defesa dos interesses dos/as cidadãos brasileiros/as que, além da dura batalha contra a pandemia, ainda têm de estar atentos/as aos interesses obscurantistas de quem se utiliza do rádio e da TV para ameaçar a nossa cada vez mais frágil democracia e atacar direitos duramente conquistados.

*Iara Moura é mestra em Comunicação pela UFF e coordenadora executiva do Intervozes

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