Intervozes

Quantas caras tem um político no mundo digital?

A possibilidade de deletar conteúdo e postar para grupos específicos fragiliza o acompanhamento de gestões públicas e de candidatos

João Dória apresenta a "ração humana": polêmica na internet fez equipe do prefeito deletar conteúdo sobre o tema.
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Por Marina Pita* 

A polêmica acerca da política de João Dória, prefeito de São Paulo, para distribuição de alimentos “reprocessados” – apelidado de ração para pobre nas redes sociais – e a forma como a comunicação da gestão pública municipal lidou com a questão acendeu um alerta: quantas vezes é possível modificar uma informação cujo registro está em suporte apenas digital? Quantas caras pode ter um político em tempos de algoritmos? 

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Conforme registrou o site UOL, em reportagem de Fernando Cymbaluk, após a negativa da secretária de Direitos Humanos de que o produto alimentício seria distribuído ainda em outubro e questionamentos por parte do próprio portal de notícias, o texto que anunciava a medida foi alterado sem qualquer registro da mudança.

Apenas quando questionada sobre as mudanças, a Secretaria de Comunicação enviou nota – e apenas ao veículo em questão – informando:  “Em virtude da desinformação generalizada promovida sobre o tema por alguns veículos de comunicação, este texto foi alterado em 16/10/2017 para melhor esclarecer o público”. 

A forma como os políticos da geração marketing e, consequentemente, suas equipes da gestão pública (!) vêm lidando com a informação é assustadora. Não há qualquer constrangimento em criar diversas narrativas, muitas vezes contraditórias, acerca de um mesmo tema. O caso da “ração humana” é exemplar.  

No entanto, a onda de políticos que fazem construção de múltiplas narrativas e que alteram informações a depender da reação do público (ou cidadãos?), inclusive escondendo registros desta ou daquela ação/opinião, está apenas começando. 

Com a possibilidade de impulsionamento de conteúdos em campanhas eleitorais – a partir da reforma eleitoral aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada por Michel Temer – a possibilidade de um político ter várias caras cresce explosivamente.  

“O papel mais central das redes sociais será a direção exata da propaganda política que não se tinha antes. Mesmo com ambiente digital, se partia do pressuposto de que o usuário tinha que ir até a página, fazer a busca. Pela primeira vez vai se poder trabalhar uma propaganda para um território, faixa etária, profissão.

Essa experiência de ir no foco publicitário é algo que a gente vai ter de forma forte nas próximas eleições”, afirmou Fabio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), em entrevista à Agência Brasil. 

A novidade, conforme descreve Malini, permitirá, por exemplo, que um candidato crie determinado conteúdo focado em um público e impulsione apenas para ele, sem que haja registro em sua página para todos os demais eleitores e cidadãos – são os chamados dark posts. Quer falar apenas com a periferia e defender benefícios sociais e, ao mesmo tempo, criticá-la para eleitores de alta renda? Pode.  

Os jornalistas, como o acima citado do Uol, interessados em apurar fatos, não conseguirão acessar estes conteúdos direcionados. Mas o mais grave: perde-se a possibilidade de controle social das propostas de um candidato à medida que ele consegue falar, em uma escala gigantesca e com acuidade que só a coleta de dados massiva permite, com grupos predeterminados. Ganha o político de muitas caras, que vai e volta de acordo com a receptividade do público, mas dessa vez sem deixar rastros para apontamentos pela imprensa, pela crítica política, pela academia.  

Some-se a isso a capacidade de analisar a psiquê das pessoas que as redes sociais possibilitaram, associadas a um tipo de estudo chamado psicometria, e teremos o efeito Trump. A psicometria é uma área da psicologia baseada na análise de dados objetivos (os muitos dados pessoais que oferecemos diariamente em nossas redes) utilizada pela Cambridge Analytics, empresa por trás da campanha online de Trump.

Este tipo de análise não deve servir para esbravejarmos nas redes sociais – mas compartilhar esta e outras análises sobre redes sociais e sobre os problemas relacionados à coleta de dados pessoais, como o uso político, pode ser importante.

Mas o que precisamos mesmo é, com tranquilidade, analisar a necessidade de uma regulação adequada para o impulsionamento em campanhas políticas e mesmo para uso da rede pela gestão pública. É ético um candidato apagar todos os comentários negativos? Pode a página de uma administração pública direcionar o impulsionamento apenas para determinados cidadãos? Pode apagar comentários? Precisamos conversar sobre isso urgentemente, porque 2018 está aí!

*Marina Pita é jornalista e integra o Conselho Diretor do Coletivo Intervozes

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