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Por que as plataformas remunerarem o jornalismo não é bom

Trabalhadores e empreendedores do setor são contrários à ideia, que está em texto substitutivo da PL das Fake News. Entenda os motivos

Imagem: iStock
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O Grupo de Trabalho que visa ao aperfeiçoamento da legislação brasileira referente à liberdade, responsabilidade e transparência na Internet (GTNET) da Câmara dos Deputados aprovou, na última quarta-feira 1, o texto base substitutivo do Projeto de Lei 2630/2020, chamado de “PL das fake news”. Destaques ainda serão analisados nos próximos dias pelos parlamentares, mas o passo foi comemorado por importante parcela da sociedade civil que atua na defesa dos direitos digitais uma vez que o texto estabelece a ampliação da regulação das plataformas como frente para ajudar a conter o fenômeno da desinformação. 

Dentre os trechos destacados –  os mais polêmicos e delicados, em termos de implicações – e que ainda serão analisados, está o artigo 38 do substitutivo do relator Orlando Silva (PCdoB/SP), que prevê que as empresas de redes sociais, mensageria instantânea e ferramentas de busca enquadradas na lei remunerem os detentores de direitos autorais das obras jornalísticas pelo seu uso. 

 

O tema é da maior relevância. As plataformas digitais que suportam o compartilhamento e acesso de conteúdo por usuários terceiros hoje são remuneradas pela venda de anúncios a esses usuários, direcionados a partir da coleta de seus dados pessoais. Ao longo dos anos, passaram a dominar o mercado publicitário online. Este ano, as duas gigantes do setor – Google e Meta (ex-Facebook) – devem obter metade de toda a receita mundial de publicidade na Internet e mais de 60% nos EUA, de acordo com a empresa de pesquisas eMarketer. O Google, vale lembrar, ainda controla os principais sistemas de leilões de venda de anúncios na Web como um todo.

Este cenário reduziu, em muito, a destinação de anúncios para empresas que produzem conteúdo, inclusive empresas de jornalismo. A queda nas receitas é, portanto, um fator central que ameaça a continuidade desta indústria, ao mesmo tempo em que não foram criados mecanismos para apoiar formas não lucrativas de jornalismo – a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), por exemplo, não só luta para conseguir recursos do orçamento da União como está continuamente ameaçada de privatização. 

De acordo com a iniciativa global Forum on Information and Democracy, que reúne dezenas de organizações internacionais e países para o debate sobre os desafios do setor, o jornalismo encontra-se em estado precário em todo o mundo, devido a “um ambiente político hostil, na melhor das hipóteses, e um ressurgimento do autoritarismo, na pior das hipóteses; além do declínio das receitas como resultado da mudança para um ambiente de mídia digital, móvel e dominado por plataformas, e do desgaste da confiança pública”. 

Sabemos que o jornalismo, especialmente o independente e ético, é fundamental para a democracia, à medida que apoia cidadãos e grupos na busca por informações e análises. Ou seja, a crise do jornalismo é também uma ameaça a um dos pilares das sociedades democráticas. Fundamental, assim, buscar formas de apoiá-lo em sua sustentabilidade.

Cavalo de troia

O caminho apontado no PL 2630, entretanto, não parece adequado. Não à toa, uma série de organizações de jornalistas e de empresas jornalísticas se uniu para manifestar ao relator sua insatisfação com a inclusão do tema da remuneração do jornalismo por plataformas. Ainda que pareça uma contradição, os trabalhadores e empreendedores do jornalismo são contrários a que as plataformas digitais tenham de pagar pelo uso de seus conteúdos. E eles estão corretos.

Primeiro, porque existem muitas maneiras de suportar o jornalismo. Antes de definir qual ou quais maneiras teriam um efeito sistêmico benéfico para a indústria e para os profissionais, Orlando Silva – respondendo à pressão das grandes empresas de radiodifusão – incluiu no texto de seu relatório a previsão de remuneração do jornalismo pelas plataformas pelo uso das obras – ou seja, pelo instrumento que cria este monopólio na exploração, o direito autoral. 

Existem muitas dúvidas se este é o melhor modelo. O Fórum on Information and Democracy, por exemplo, defende uma série de medidas para garantir a sustentabilidade do jornalismo, como a criação de um fundo público, mas não novas modalidades de cobrança pelos direitos autorais. A Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) também apostam, prioritariamente, em uma alternativa: a taxação das plataformas, no caso do Brasil, por meio da criação de uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), para financiar o jornalismo. 

Caso o Congresso Nacional escolha a opção da cobrança por direitos autorais, pode estar fechando as portas para outros modelos que poderiam, inclusive, ser combinados (se discutidos conjuntamente) ou mais eficientes para a garantia do interesse público. A criação de um fundo, a partir da taxação das empresas que se beneficiam da produção de conteúdo jornalístico, poderia permitir a destinação de recursos a partir de critérios públicos, priorizando, por exemplo, a mídia local e regional, a mais afetada – inclusive considerando a observância das boas práticas e da ética, conforme orientação das entidades representativas da categoria.  

Do jeito estabelecido no substitutivo do PL 2630, é bem possível que apenas algumas empresas consigam, em negociação privada direta com as plataformas, uma remuneração pelo uso de seu conteúdo nas redes sociais, serviços de mensageria e ferramentas de busca. Ficará, em grande medida, a critério das plataformas, decidir com quem vão celebrar acordos em particular. Isso em um país que sofre, historicamente, da concentração dos meios de comunicação, da ausência de pluralidade e diversidade de vozes. 

E mais: é possível que as plataformas digitais optem ainda por excluir, ignorar ou impedir a circulação de conteúdos jornalísticos das empresas que não autorizarem seu uso não remunerado ou  não aceitarem os termos de remuneração dessas empresas. Aí teríamos o efeito reverso do que se busca com a medida, na contramão do que pretende o PL para o enfrentamento à disseminação de desinformação: a redução da circulação de conteúdo jornalístico, com impacto significativo nos direitos de acesso à informação da população brasileira.  

Mesmo considerando que o modelo de cobrança por usos de obras de direitos autorais seja uma medida eficiente e com resultados benéficos para a circulação de conteúdo, o texto proposto pelo relator não dá nem pistas de quais modalidades de uso das obras jornalísticas ensejariam remuneração. A proposição, como está, limita-se a dizer o que não ensejará esta remuneração – o simples compartilhamento de link pelo usuário e o disposto no artigo 46 da Lei de Direitos Autorais. 

Essa generalidade com que a remuneração é tratada impede que saibamos não só quais modalidades de usos ensejarão remuneração, mas também como será auferido o uso e por quem, como será feita a distribuição dos recursos (o ECAD tem todo um modelo complexo de distribuição dos direitos autorais arrecadados, por exemplo) e quem fiscalizará o processo. 

Ante tantas dúvidas, está evidente que o tema merece mais discussão pelo legislativo. Mas até o momento o relator optou por prever este detalhamento em regulamentação do Executivo Federal. Ou seja, do governo Bolsonaro, que, certamente, não estará de portas abertas para ouvir as implicações de determinadas escolhas para a pluralidade e diversidade no ambiente jornalístico. Bolsonaro tem horror à diversidade. 

Precisamos de jornalismo, precisamos saber como as plataformas, tão beneficiadas pelos conteúdos produzidos pelas empresas e profissionais do jornalismo, podem contribuir para a sua sustentabilidade. Mas não é com um texto nebuloso a ser regulamentado por um governo autoritário que chegaremos a uma boa solução. Nesta semana, o Grupo de Trabalho terá uma boa oportunidade de corrigir este equívoco.

 

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