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Ofensiva contra Sleeping Giants Brasil pode criar precedente perigoso

Conhecido por disseminar desinformação, Jornal da Cidade Online entra na Justiça para obter violação da proteção de dados de administradores

Foto: Reprodução Sleeping Giants Brasil Foto: Reprodução Sleeping Giants Brasil
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Por Bruno Marinoni e Marina Pita*

Em maio de 2020, um perfil no Twitter denominado Sleeping Giants (“Gigantes Adormecidos”) surgiu como novo personagem do realismo fantástico brasileiro e desferiu um duro golpe contra a indústria da desinformação. O recém-criado passou a cobrar publicamente a responsabilidade de empresas anunciantes no combate às chamadas “fake news”, pressionando para que não financiassem através de publicidade canais de circulação desses conteúdos.

A contraofensiva não tardou e, logo, o Jornal da Cidade Online, veículo que tem sido sistematicamente questionado acerca da qualidade das apurações e veracidade das informações publicadas, inclusive por parte da CPMI das Fake News, entrou na justiça para obter a violação da proteção de dados do Sleeping Giants no Twitter. A pressão cresceu a partir de outubro com a não permissão por parte do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul à participação de entidades especializadas em direito à informação e liberdade de expressão no país, bem como, quando exigiu que a plataforma digital entregasse as informações dos administradores do perfil antes do trânsito em julgado do processo.

A indústria da desinformação depende de modelo de negócio das plataformas digitais que agenciam a relação entre editores de conteúdo e anunciantes por meio de ferramentas como, por exemplo, o Google AdSense, a qual era usada pela página desinformativa. Assim, o meio mais eficaz de impedir que tais veículos propaguem notícias falsas causando enormes prejuízos à democracia é alertando os seus anunciantes sobre a desinformação causada pelos veículos onde anunciam.

A forma que o site de notícias falsas do advogado José Pinheiro Tolentino Filho escolheu para atacar o Sleeping Giants na Justiça, exigindo que o Twitter entregue os dados de identificação do usuário autor da página, tem por objetivo acertá-lo pelo menos de duas formas. A primeira seria através de pressão e litigância contra os administradores do perfil, mobilizando processos judiciais por difamação, acusando-os de apontarem que a página Jornal da Cidade Online difunde notícias falsas (o que, na realidade, é um fato amplamente reconhecido, já lhe tendo rendido inclusive condenação por danos morais contra desembargadores e investigação na chamada CPI das Fake News).

A segunda forma, é possível dizer pelo modus operandi como atua o campo político ao qual pertence o Jornal da Cidade Online, se daria através do uso desses dados para mobilizar campanhas de injúrias e ameaças contra as pessoas que operam o Sleeping Giants. Foi, por exemplo, o que aconteceu com a versão estadunidense dessa iniciativa e é o que costuma acontecer cotidianamente com os adversários do bolsonarismo, bastando ler o noticiário para se estar ciente disso.

Matt Rivitz, publicitário que criou o Sleeping Giants nos EUA em novembro de 2016, tem sofrido ameaças de morte desde que um site conservador revelou sua identidade. Não somente contra ele, as ameaças foram dirigidas também contra o seu filho de apenas 14 anos. A versão norte-americana dos gigantes conseguiu impactar, entre outros, o desinformativo site Breitbart News, o qual foi editado por Steve Bannon, ex-estrategista do governo Trump.

Os vínculos da indústria da desinformação com o chefe do Poder Executivo brasileiro são também conhecidos. A importância do Jornal da Cidade Online para as redes de notícias falsas bolsonarista pode ser medida pela reação que causou no círculo íntimo do presidente Bolsonaro a ação do Sleeping Giants. Após a decisão do Banco do Brasil de não mais anunciar na página, Carlos Bolsonaro, filho do presidente, e o secretário de Comunicação à época Fábio Wajngarten se manifestaram publicamente contra o ocorrido e o banco sofreu intervenção para que voltasse atrás na resolução.

De acordo com matéria publicada em abril de 2020 pela agência de checagem de informação Aos Fatos, o Jornal da Cidade Online faz parte de uma rede de desinformação que se mantém através de financiamento publicitário e está vinculado diretamente à página bolsonarista mantida pela viúva do torturador Alberto Brilhante Ustra. Ambos os sites compartilhavam até o início do ano o mesmo código de identificação no sistema do Google AdSense, junto com outros domínios. Isto significa dizer, que o dinheiro levantado por eles através do serviço de “publicidade programática” oferecido pelo Google era dividido dentro deste mesmo grupo.

O histórico desse vínculo da indústria da desinformação com os defensores declarados de expoentes da tortura e da violência política acende uma luz de alerta que justifica a preocupação dos defensores de direitos humanos e liberdades civis com a possibilidade da quebra do sigilo de dados dos administradores do Sleeping Giants. Uma vez reveladas essas informações, o seu impacto para a vida dos envolvidos é irreversível, o que é extremamente grave em um país com as altas taxas de violência e assassinato contra comunicadores e defensores dos direitos humanos como é o Brasil. Além disso, o combate à desinformação pode perder talvez o seu instrumento atual mais poderoso de enfrentamento às chamadas fake news, pela sua capacidade de estrangulamento da viabilidade econômica de se manter grandes canais de difusão de conteúdos falsos.

Enquanto por um lado o Sleeping Giants utiliza pseudônimo como estratégia de proteção da integridade física e da vida de seus administradores, por outro o Jornal da Cidade Online criou colunistas fictícios para atacar com calúnias os seus alvos. Nesse caso, porém, criou perfis de pessoas falsas manipulando retratos de pessoas reais com o objetivo de enganar o público quanto à existência de pessoas assinando os textos. Os perfis atribuídos a articulistas bombardeavam com desinformação a imagem de parlamentares, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e desembargadores.

Anonimato e redes sociais

Vale destacar que a vedação ao anonimato, prevista na Constituição, não deveria ser usada como argumento contra o Sleeping Giants Brasil. Como se sabe, tal veto busca impedir a consumação de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento.

Em verdade, é possível questionar, inclusive a classificação do perfil do Sleeping Giants como anônimo pois, ainda que o público não possa identificar o autor, a rede social detém os dados – aqueles previstos por lei de serem guardados, que, se cruzados com dados de provedores de conexão, podem levar à identificação do perfil. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal adotou uma compreensão de que a prática do anonimato pode ser observada de modo absoluto e relativo, sendo que neste último um terceiro é capaz de individualizá-lo, chegando à sua identidade.

Na internet, as informações armazenadas pelo provedor que fornece acesso à internet e pelos que exploram a oferta de serviços online podem identificar. Para esses provedores ninguém é anônimo, desde que seja observada a legislação (no caso, o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD) que prediz a integridade dos dados eletrônicos que estão sob sua guarda, os quais contêm informações sobre a identificação (eletrônica) dos usuários.

Nesse sentido, o internauta que utiliza a internet para praticar certas condutas e o faz através do anonimato relativo, deveria ter seu direito ao sigilo de dados, à privacidade, mitigados apenas se seus atos violarem direitos alheios. Assim, a Justiça não deveria obrigar o Twitter, a pedido do Jornal da Cidade Online, a entregar os dados do usuário por trás da conta – ao menos que seja reconhecida anteriormente a ilegalidade do conteúdo publicado.

O uso de pseudônimo ou anonimato tem potencial para empoderar pessoas, dando voz àqueles que por alguma razão enfrentam dificuldades de ter espaço para expressar seus pontos de vistas, permitir a participação e engajamento, oferecendo a sensação de segurança e proteção, ajudar as pessoas a falarem de forma mais aberta, sem medo e receio de censura por contrariar poderosos interesses e proteger as informações e os dados pessoais, diminuindo a vigilância e a violação da privacidade.

A não preservação do anonimato no presente caso expõe pessoas ao risco de vida e de graves restrições de liberdade. Assim, ainda que se entendesse que a vedação ao anonimato deva ser resguardada por ser um direito constitucional, a vida é o maior dos direitos, não havendo dúvidas de que numa colisão de princípios constitucionais como essa, a vida e a liberdade devam ser preservadas.

Como se pode notar, a página Sleeping Giants teceu críticas a determinados produtores de conteúdo e solicitou posicionamento de anunciantes. E, na avaliação do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, não há nada de ilícito no ato que pudesse então levar a necessidade de identificação do usuário por trás do perfil. Foi este motivo que mobilizou a organização a ingressar com pedido de Amicus Curiae no caso, que foi negado.

Alertamos, então, que a liberdade de expressão, à qual se refere o processo judicial, não deve ser tomada como uma autorização para que veículos de desinformação possam atacar a imagem dos seus desafetos e manipular informações de interesse público para tirar vantagens políticas e econômicas. Ela deve estar a serviço da garantia de que possamos mobilizar informações verdadeiras, sem qualquer constrangimento, na cobrança de responsabilidade social por parte de agentes privados e públicos. E nós estamos suficientemente acordados e de olhos bem abertos para não ter dúvidas quanto a isso.

*Bruno Marinoni é jornalista, doutor em Sociologia e integrante do Intervozes.

Marina Pita é formada em Comunicação Social, pós-graduanda em Direitos Digitais e está coordenadora executiva do Intervozes.

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