Intervozes

O que o BBB nos diz sobre riscos da internet dominada pelas big techs?

Sem regulação e transparência, plataformas seguem lucrando com a disseminação de desinformação e discursos de ódio

Apoie Siga-nos no

por Bruno Marinoni*

O Big Brother Brasil (BBB) é um reality show produzido pela TV Globo que funciona, em parte, como um jogo. Independentemente das vantagens conquistadas “dentro do programa”, o nível de popularidade dos participantes do lado de fora das telas determina, ao fim, o campeão. A partir disso, já podemos imaginar como a falta de uma regra clara para se derrubar uma conta nas redes sociais pode favorecer ou prejudicar a campanha de um competidor e de sua torcida – também chamada de “fandom”.

Foi o que aconteceu no dia 26 de março, quando o Twitter decidiu, para surpresa de todos, que deveria suspender o perfil da competidora Juliette Freire pela segunda vez em menos de duas semanas. Por que esse caso é importante? Porque ele nos revela, em um programa de altíssima audiência (os seguidores de cada competidor são contabilizados em milhões nas redes sociais), como a falta de meios transparentes de regulação das redes sociais – e das plataformas digitais em geral – nos deixa à mercê do interesse das poucas empresas que controlam o setor de tecnologias da informação – as chamadas big techs. Não acontece apenas na área do entretenimento. O mesmo fenômeno é observado, por exemplo, durante as campanhas eleitorais. O mesmo mecanismo regula diferentes correntes de opinião e impacta na série de aspectos da nossa vida a depender de quem decide e de por que se decide que determinados conteúdos devem ganhar projeção ou ser obscurecidos na esfera pública das redes.

Isto não significa dizer que o Twitter tenha algum motivo específico para se contrapor à ascensão meteórica da popularidade da competidora paraibana do BBB (no Instagram seu perfil já tem mais de 16,5 milhões de seguidores). O episódio revela, isto sim, como a opacidade da arquitetura da rede social – configurada para funcionar como um mecanismo centrado na extração de dados pessoais, venda de anúncios e obtenção de lucro – interfere de forma incompreendida, mas semelhante em diversas esferas da vida social.

A falta de uma regulação pública e de transparência no funcionamento das big techs decorre do poder desses monopólios privados para desarticular iniciativas que buscam frear seu apetite voraz por lucro em detrimento dos direitos constituídos. Essas corporações têm recorrido ao lobby, ao desgaste jurídico e a mecanismos de propaganda e cooptação para consolidar a ideologia da autorregulação privada como único meio capaz de não travar uma suposta marcha inevitável do progresso tecnológico. Entretanto, algumas resistências têm se manifestado com alguma relevância nesse cenário.

A União Europeia apresentou no dia 15 de dezembro duas propostas de regulação para as big techs: o Digital Services Act (Lei de Serviços Digitais) e o Digital Market Act (Lei de Mercados Digitais), tendo como principais focos o Facebook, o Google, a Apple, a Microsoft e a Amazon. Os termos nos quais se deve dar a regulação ainda são objeto de muitos debates, mas o fato é que tem ganhado fôlego no mundo a compreensão de que o regime privado monopolista que domina a internet atualmente precisa ser submetido aos mecanismos democráticos e ao interesse social.

A falta de uma regulação democrática das plataformas comandadas pelas big techs tem deixado a porta aberta para discursos de ódio

A dominação dos interesses econômicos privados nas redes tem nos colocado em uma situação preocupante de vulnerabilidade. Voltando ao nosso exemplo, embora o Twitter tenha afirmado à coluna F5 da Uol que “as pessoas detentoras das contas são avisadas dos motivos”, uma das administradoras da conta de Juliette Freire, Tereza Falcão, afirmou ao jornal Extra não saber a razão pela qual o perfil teria sido suspenso. Especulou, porém, que o episódio poderia estar relacionado com denúncias de violação aos direitos autorais da Globo sobre as imagens do BBB. O Twitter, contudo, informa que a remoção de conteúdo por violação de direitos autorais só acontece quando ela é reivindicada pelo detentor do direito.

Esse ambiente de falta de regulação e de transparência, no qual domina ditatorialmente o poder privado
tem sido objeto de crítica por parte do Intervozes, que tem dedicado parte dos seus esforços para lançar luz sobre o problema. No ano passado, um projeto de lei que tratava do tema com foco na desinformação, o PL Fake News, foi alvo de diversas manifestações da sociedade civil por combinar uma série de medidas que podem resultar na ameaça aos direitos dos usuários de internet no Brasil. Uma análise sobre os problemas do PL relacionados a direitos autorais, como alegou a administradora da conta de Juliette, pode ser encontrada aqui.

As especificidades que envolvem cada caso são obscuras, mas profissionais, pesquisadores e ativistas têm revelado – sob diversas denominações como “capitalismo de vigilância”, “capitalismo de plataforma” e outros – a lógica desse sistema dominado pelo imperativo do lucro, baseado na extração de dados pessoais e na venda de audiência para anunciantes na forma de predição do nosso comportamento nas redes.

Desinformação e virulência

Além do problema em si da falta de regulação democrática dos fluxos e dos conteúdos de comunicação nas redes, a opacidade imposta pelas big techs sobre os critérios para a suspensão de uma conta se desdobra em outro risco. A ausência de transparência do Twitter sobre as razões que o levaram a desativar o perfil da competidora Juliette Freire resultou num outro fenômeno comum nesse ambiente (ironicamente) hostil ao direito à informação sustentado pelas plataformas digitais. Imediatamente se manifestou um processo de desinformação em que administradores das contas de diferentes participantes (e as respectivas torcidas) começaram a trocar acusações. De um lado, surgiram postagens denunciando o que supostamente teria sido um ataque coordenado ao perfil da competidora; de outro, foi mobilizado um escritório jurídico para defender dois participantes daquilo que consideraram ser uma campanha difamatória baseada em “fake news” postadas nas redes sociais.

Os administradores das contas dos competidores Gilberto Nogueira e Sarah Andrade, acusados pelos fãs da rival de coordenar o ataque contra a conta de Juliette, publicaram no dia 27 de março nas suas contas no Twitter e Instagram uma nota à imprensa, na qual anunciavam a contratação de um escritório para defendê-los dos ataques, perseguições e “fake news”. Informaram que estariam “tomando as providências necessárias para identificar este inescrupuloso ataque e seus responsáveis sofrerão as sanções da justiça, tanto na esfera cível como criminal”. O que vimos, então, foi a desinformação produzida pela plataforma Twitter esquentar os ânimos entre as torcidas e produzir uma cadeia de desinformação, fazendo com que as campanhas (que já vinham se deteriorando nos últimos dias por causa dos conflitos dentro da competição) assumissem aqui fora tons mais raivosos, mais marcados pela troca de ofensas e pela belicosidade, dificultando ainda mais a possibilidade de um entendimento comum. Podemos dizer que o fenômeno se assemelha bastante com o que observamos na cena política atual do planeta, no qual nossas
interações são cada vez mais dominadas pelas big techs. Além disso, a intensificação da virulência nesse tipo de conflito mobiliza e aumenta o engajamento dos usuários, o que para as plataformas significa, em termos econômicos, aumento dos seus dividendos.

A rivalidade entre as torcidas do BBB tem mobilizado discursos de ódio nas redes (mas não só) desde o início do programa, marcados pelo machismo, racismo, homofobia, xenofobia e outras formas de opressão. A falta de uma regulação democrática dessas plataformas digitais comandadas pelas big techs tem deixado a porta aberta para esses tipos de violações e os usuários atônitos, sem saber como recorrer para inviabilizar a reprodução desses conteúdos.

Além disso, há casos também de exposição de dados pessoais de membros das torcidas adversárias. Alguns fãs chegaram a denunciar que informações pessoais da participante Juliette Freire também estariam sendo compartilhadas em grupos de WhatsApp. As corporações se isentam de toda forma da responsabilidade sobre a segurança dos dados dos usuários, que com frequência são obtidos em episódios de “vazamento” – dos quais, o mais famoso é o que envolve a empresa Cambridge Analytica e o Facebook. Embora não sejam as únicas a vazar dados pessoais, as big techs são as maiores detentoras desse material sobre as nossas vidas e nós não temos praticamente nenhuma ingerência sobre como este é tratado. Iniciativas recentes como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) vem para tentar confrontar essa realidade, mas é preciso que a população possa se apropriar de mecanismos como esse que asseguram o seu direito à privacidade e à soberania sobre os seus dados pessoais.

Como podemos ver, a relação do programa Big Brother com uma esfera pública marcada pelo domínio das big techs e suas redes sociais revela em torno de um show que simula a realidade uma série de riscos reais para a sociedade. Fica evidente, ainda que de uma forma muito panorâmica, a interferência do poder monopolista privado no agendamento das pautas sociais, na configuração de preferências e marginalizações de determinados vieses, seu papel na produção de desinformação, na exploração econômica de conflitos e na insegurança em torno da garantia do nosso direito a privacidade. Poderíamos enumerar outras questões, mas nosso interesse aqui é fundamentalmente acenar para a leitora e para o leitor como o microcosmo em torno de um produto do entretenimento está manifestando um problema generalizado no nosso planeta dominado pelos monopólios privados do setor.

A solução para enfrentar o problema não é simples, mas converge nitidamente para a necessidade de uma regulação democrática capaz de conferir transparência aos mecanismos das plataformas digitais, colocar os interesses sociais acima do imperativo de lucratividade, garantir a segurança da privacidade dos usuários e a liberdade de se manifestarem livremente sem reproduzir discursos que violam direitos fundamentais. A retórica do capital em defesa da desregulação e da suposta inevitabilidade do caminho que nos conduz atualmente tem nos apresentado como única opção de futuro a catástrofe ambiental, o aprofundamento da desigualdade e dos conflitos. Construir uma alternativa pode ser um big desafio, mas possível pra quem sabe que – ao contrário do que eles querem nos fazer acreditar – nada deve parecer natural.

*Bruno Marinoni é militante do Intervozes, mestre em Comunicação e doutor em Sociologia pela UFPE

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo