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O lobby da indústria de direito autoral para bloquear sites no Brasil

Pressão dos grandes estúdios e produtores de conteúdo contra compartilhamento de arquivos ganha força no Congresso. Saiba o que você perde

Bloqueio de sites: medida é ineficaz e pode reduzir acesso a bens culturais
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Por Marina Pita*

Há alguns anos, copiar um filme para uso doméstico, emprestar para os amigos uma fita VHS ou uma cassete com suas músicas favoritas era parte do nosso cotidiano.

Com a passagem do mundo analógico para o digital, a prática da cópia passou a ser vista como algo criminoso – mesmo que copiar seja muito diferente de roubar. Quando se copia, ninguém fica sem, vale lembrar.

Mesmo assim, as entidades representantes de grandes produtoras de conteúdo investem cada vez mais pesado em mídia e lobby para que a distribuição de conteúdos seja tratada como crime da mesma gravidade que o terrorismo, tráfico de drogas, exploração sexual de crianças e adolescentes e tráfico internacional de armas. Não fosse a lavagem cerebral feita diariamente sobre os consumidores, este tipo de comparação soaria ultrajante.

Não negamos aqui que a legislação de direitos autorais no Brasil precisa ser atualizada diante dos avanços tecnológicos.

Todos os setores, tanto as grandes empresas controladores de milhares de registros de direito autoral, quanto educadores, autores, músicos e defensores da liberdade de expressão concordam com isso. Mas como atualizar a lei é a grande polêmica.

De um lado, estão aqueles que defendem que os direitos autorais devem ser defendidos a todo custo – doa a quem doer. De outro, os que entendem que o direito autoral não é mais eficaz para garantir a produção artística e, por isso, propõem modelos alternativos para o setor.

Parcela dos especialistas, talvez a maioria, também aponta a importância de regular de maneira diferente segmentos diferentes.

Trata-se de um debate que precisa ser feito com profundidade, envolvendo todos os diferentes interesses em jogo – inclusive o dos cidadãos, que tem direito de acesso à informação e à cultura no mundo digital.

O problema é que o poder econômico da indústria do direito autoral tem falado mais alto. O circo está pegando fogo, queimando rápido, sem que a maioria se dê conta disso.

Em 2016, no apagar das luzes da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos chamados crimes cibernéticos, a Motion Picture Association (MPA) – que representa mega estúdios como Disney, Fox, Sony, NBC, Universal e Viacom –, junto com associações de caráter semelhante, conseguiram inserir no relatório final da CPI a previsão para o bloqueio total de sites que violem direitos autorais.

A medida teve pouca repercussão na época, até porque parte da imprensa brasileira – sobretudo os veículos ligados ao Grupo Globo – também tem interesse no assunto. Aprovado na CPI, o texto começou a tramitar na Câmara dos Deputados.

Agora, o lobby dos estúdios encontrou uma ótima brecha para que ele seja aprovado rapidamente, sem qualquer debate público. Pretendem pegar carona na votação de um projeto, que já se encontra do plenário da Câmara, em fase final de votação, que pretende justamente o contrário: impedir o bloqueio de sites e aplicativos como o WhatsApp.

A jogada da MPA é inserir uma emenda no PL criando uma exceção para os sites que violem direitos autorais – que poderiam, então, sem bloqueados totalmente. 

Por que bloquear sites por infração de direitos autorais é um problema

Não é a primeira vez que a indústria do direito autoral tenta resolver seus interesses econômicos pegando carona em outras leis em debate no Parlamento.

Quando o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) estava sendo debatido, também houve enorme pressão para que ele trouxesse a previsão de que conteúdos supostamente violadores de direitos autorais fossem removidos das redes sem ordem judicial.

Na época, felizmente se compreendeu que o tema era bem mais complexo e que tais questões deveriam ser tratadas num processo específico, de reforma da Lei de Direitos Autorais.

Na época, o tema estava em discussão no Ministério da Cultura, mas agora também foi congelado. Os grandes produtores de conteúdo voltaram então à baila para criar um novo penduricalho legal, agora se aproveitando do PL que impede o bloqueio de sites e aplicativos.

Além de ignorar a complexidade do tema, que requer uma discussão minimamente aprofundada na sociedade, autorizar o bloqueio de sites por infração de direitos autorais terá consequências problemáticas.

Em primeiro lugar, a medida pode impedir que páginas online dedicadas ao compartilhamento de arquivos entre pessoas se tornem inacessíveis no Brasil, mesmo que elas não sejam usadas exclusivamente para compartilhar conteúdos violadores de direitos autorais.

Várias plataformas de troca de conteúdo entre pessoas de diversas partes do mundo podem ser penalizadas, fazendo com que o mal uso dessas plataformas por parte de seus usuários impeça que a plataforma em si exista.

A proposta de bloquear sites inteiros também é ineficaz. Hoje, mesmo quando plataformas usadas exclusivamente para compartilhar conteúdos protegidos são tiradas do ar, rapidamente outras equivalentes são criadas.

E cada vez mais cresce o número de usuários capazes de mascarar tecnicamente a origem de suas conexões e assim navegar na rede como se estivessem em outra parte do mundo, escapando os bloqueios determinados em um ou outro país.

O esforço técnico e econômico para barrar tais contornos de acesso a páginas eventualmente bloqueadas claramente não valeria a pena. A lista de sites seria sempre crescente, num jogo de gato e rato infinito.

Argumentar que este tipo de lei vem sendo adotado em vários países europeus e, por isso, o Brasil deveria seguir o mesmo caminho, também é algo que não se sustenta.

Não há como comparar o Brasil com a França ou com a Bélgica em termos de capacidade de acesso das populações a bens culturais. Também a posição econômica dos países na cadeia de produção dos bens culturais é outra.

É mais interessante para um país que recebe vultosos recursos em direitos autorais e taxas de propriedade intelectual defender a implementação deste tipo de lei. Aqui, o caso é diferente.

Soluções alternativas

No Brasil, o surgimento de novos modelos de oferta de conteúdo – como rádios digitais e locadoras de vídeo virtuais – tem se mostrado efetivo para converter tradicionais usuários de serviços de compartilhamento de arquivos em consumidores registrados e pagantes.

A facilidade e a garantia de segurança no acesso ao conteúdo convencem boa parte da população com recursos a arcar com  assinaturas dos serviços.

E, ainda que nem todos os usuários da Internet deixem de consumir, irregularmente, em casa, conteúdos protegidos por direito autoral, isto não é necessariamente ruim.

O impacto que este tipo de bloqueio total pode ter no acesso a bens culturais em um país de extrema desigualdade social como o Brasil é algo a se considerar seriamente.

A própria indústria detentora dos direitos autorais poderia perder, já que lucra cada vez mais com o licenciamento de produtos (roupas, brinquedos, acessórios em geral) relacionados ao conteúdo original.

Quanto menos gente tem acesso a eles, menos produtos são vendidos. Estamos falando de um país em que metade da população não tem acesso ao cinema.

Nessas circunstâncias, permitir a aprovação de uma mudança legislativa dessa forma é mais do que temerário. O que o Brasil precisa é de uma agenda legislativa e de políticas culturais relacionadas ao mundo digital que respondam às necessidades do país e de sua população, 50% ainda desconectada.

Aprovar o total bloqueio de sites e aplicações em função de uma suposta proteção aos direitos autorais dos grandes estúdios só ampliará a exclusão cultural – prática que começa a virar moda no Brasil de hoje.

* Marina Pita é jornalista e integra o Conselho Diretor do Intervozes.

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