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O dia para desafiar a invisibilidade lésbica na mídia e na sociedade

O 29 de Agosto marca a luta das mulheres lésbicas também pelo direito à expressão. Apesar de pautar o tema no mês, a mídia segue longe do ideal

Amelinha Teles: tabu impediu visibilidade lésbica até dentro da esquerda
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Por Camila Nóbrega*

A primeira mulher a vender um milhão de exemplares de livros no Brasil, Cassandra Rios, foi uma escritora lésbica que contava histórias sobre mulheres protagonistas de suas vidas e desejos. Foi também, no entanto, a mais perseguida e censurada do país.

Seus 36 livros até hoje não são encontrados nas livrarias brasileiras, como fruto da marginalização que o legado da escritora enfrenta, mesmo após sua morte. No auge da Ditadura Militar, ela teve 33 de suas 36 publicações proibidas e apreendidas.

O silenciamento de narrativas de (e sobre) as mulheres lésbicas é marcante não apenas na literatura como também na história do jornalismo e na trajetória da comunicação no Brasil. São narrativas distorcidas e silenciadas até hoje.

Basta uma rápida busca por notícias com a palavra “lésbica” para perceber a quantidade de reportagens sobre violência e sobre as poucas e polêmicas personagens retratadas na televisão – com destaque para a recente retirada de um trecho da reprise da novela global “Senhora do Destino”, na qual uma das personagens falava sobre sua sexualidade, assumindo-se como lésbica.

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Em agosto, porém, o quadro muda. E essa mudança tem tudo a ver com o dia de hoje, 29 de agosto, responsável por uma chuva de reportagens e artigos normalmente raríssimos nos veículos de comunicação e que, neste momento, abordam assuntos variados sobre o cotidiano de mulheres lésbicas.

Ainda que muito aquém da diversidade da realidade e em um movimento muito tímido dentro do cenário geral da mídia  que segue com abordagens criminalizadoras e estereotipadas durante este mês foi possível encontrar notícias sobre centenas de eventos em todo o país; sobre campanhas – como a da Universidade Federal de Juiz de Fora, que espalhou no campus fotos e falas reconhecendo funcionárias lésbicas; além da recuperação de narrativas frequentemente submersas, relegadas a uma cobertura midiática ínfima.

É o caso do documentário “Eu sou a próxima”, lançado em abril pela Coletiva Feminista Luana Barbosa, quando recebeu quase nenhum espaço na mídia. O filme conta a história de Luana, assassinada por policiais militares, vítima de feminicídio, lesbofobia e racismo. Sua não-divulgação também foi violadora da memória de Luana. Neste agosto, nomes como o dela e produções que trazem estas memórias surgem em textos, eventos, debates.

Este e outros exemplos explicam a importância da data, estabelecida no Brasil como Dia da Visibilidade Lésbica. Criada por ativistas brasileiras, ela marca a realização do 1º Seminário Nacional de Lésbicas e Bissexuais (Senale), realizado em 29 de agosto de 1996. Há movimentos que celebram a data no dia 19 do mesmo mês, quando ocorreu a primeira manifestação de mulheres lésbicas, em São Paulo, organizada pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista, em 1983.

O resultado é que agosto é mês de luta por espaço para uma comunicação tão invisibilizada sobre o assunto e relegada a segundo plano mesmo dentro do movimento LGBT. Afinal, como apontam as organizações de mulheres lésbicas, conseguir espaços de protagonismo, neste caso, significa enfrentar não apenas a homofobia (que aqui tem nome próprio: lesbofobia), mas também o machismo e a estrutura patriarcal na qual vivemos.

Quebrando tabus

O dia 29 de agosto é também momento de recuperar a memória de mulheres lésbicas no país, que só vem à tona aos poucos. No filme “Lampião da Esquina”, da documentarista Lívia Perez, que conta a história do primeiro jornal gay brasileiro, o jornalista e escritor João Silvério Trevisan fala sobre o cotidiano como repórter em redações e afirma: “nas reportagens, a palavra lésbica era riscada por editores e redatores e trocada por feminista”.

Já no livro Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil, lançado em 2013, as autoras Amelinha Teles e Rosalina de Santa Cruz Leite narram os embates entre mulheres à frente dos jornais Brasil Mulher e Nós Mulheres.

Em um primeiro momento, havia divergências no que dizia respeito a se assumir como veículos feministas, o que ficou mais consolidado com o tempo.

Mas, além disso, havia o imenso tabu – também interno – em relação às mulheres lésbicas. Embora várias das comunicadoras fossem lésbicas, o tabu impediu que o assunto ganhasse mais espaço nas publicações.

Em entrevista sobre o livro ao Portal Sul 21, Amelinha Teles declarou: “O diálogo era muito difícil dentro do feminismo de esquerda. A esquerda tinha muito medo de gays e lésbicas. Naquela época, nem chamavam assim, todo tratamento era bastante pejorativo (…) A esquerda tinha medo porque achava que gays e lésbicas iriam atrair a repressão”.

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Pensando de lá para cá, é notável a mudança e a multiplicação de representações de mulheres lésbicas organizadas, dando luz inclusive às diferenças existentes, como a questão racial, apontada pelas mulheres negras lésbicas como estrutural.

Direito à comunicação

Mas é também evidente a lentidão do processo e a percepção de que a mídia convencional, muitas vezes, em vez de corresponder a esses avanços, atua no sentido de estagnar ou dar passos atrás em termos de representação.

Esse questionamento foi abordado anteriormente neste blog pela jornalista Gyssele Mendes. Um trecho do artigo aponta: “democratizar a mídia não implica somente em ampliar o acesso e buscar a pluralidade nas representações. Em outras palavras, não se trata apenas de democratizar o produto, mas também o processo de construção dessas representações, que servem como um mapa social de leituras e condutas sociais”.

Por isso, a agenda de agosto relacionada à visibilidade lésbica está diretamente ligada ao direito à fala e à expressão, princípios básicos fundamentalmente ligados ao direito à comunicação e que, da mesma maneira, são violados no momento em que esse direito não está garantido.

Se a ideia de comunicação é a noção de tornar comum, o caminho contrário é exatamente o oposto, ou seja, a invisibilidade, a construção falsa da ideia de estranheza, da exceção e da não representatividade.

Sintomático é que, até hoje seja necessário mencionar sempre os mesmos escassos casos de personagens em novelas, ou de celebridades que se assumem, em meio ao imenso número de mulheres lésbicas.

O mesmo se repete no jornalismo, vide o caso da jornalista esportiva Fernanda Gentil, que vive uma enxurrada de textos, fotografias e vídeos sobre sua vida desde que declarou um relacionamento com outra mulher.

Gritante também é quando a invisibilização faz parte de contratos de trabalho, patrocínios e afins, como ocorre na esfera da publicidade. Durante a realização das Olimpíadas Rio 2016, vieram à tona casos de atletas que falam abertamente sobre sua orientação sexual, mas que temem julgamentos da opinião pública e retaliações das empresas que os patrocinam.

Foi o que declarou a lutadora de taekwondo Júlia Vasconcelos. Aos 24 anos, ela fez parte do 1,3% dos 465 competidores do Time Brasil assumidamente lésbica, gay, bissexual ou transexual (LGBT) dos Jogos Olímpicos do Rio-2016.

Em entrevista ao Correio Brasiliense um pouco antes dos Jogos, Julia disse: “Muitos atletas não se assumem devido ao medo do preconceito do público, que, consequentemente, afasta possíveis patrocinadores e apoiadores”.

Pesquisa realizada pelo Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS), da Fundação Getúlio Vargas, com Youtubers e empresários constatou que, apesar da mudança de atores e a crescente produção de conteúdos online sobre a população LGBT – mais especificamente sobre mulheres lésbicas –, boa parte desse material vem sendo invisibilizado por meio de algoritmos.

Fugindo de discursos de ódio, empresas recuaram no apoio a questões como visibilidade lésbica e LGBT e, como resultado, jovens entre 18 e 25 anos não encontram mais nas redes tantos conteúdos sobre a temática. O filtro vem de algoritmos desenvolvidos por homens cis, brancos.

Novos olhares e múltiplas vozes

Para completar, a abordagem jornalística sobre mulheres lésbicas muitas vezes reforça discursos biologizantes, em vez de dar espaço à diversidade. No artigo “Visibilidade lésbica: um comentário a partir de textos da mídia”, Lenise Santa Borges traz a reflexão sobre o discursos científico como o lugar de saber/verdade.

Analisando reportagens em revistas para um público de mulheres jovens, ela identificou a reprodução constante de vozes de especialistas escolhidas e autorizadas a comentar o fato de “meninas” estarem ficando com “meninas”.

Nas matérias em questão, psicólogos(as) e sexólogos(as) emprestam crédito à fala jornalística para falar sobre o assunto, em detrimento de uma multiplicidade de discursos possíveis.

Por fim, não há dados no Brasil sobre a população de mulheres lésbicas e são raros os canais de comunicação feito por e para mulheres lésbicas voltados para a construção de novas narrativas acerca da sexualidade das mulheres (como o site Um outro olhar).

No atual contexto político, é difícil também a discussão de qualquer política pública ou projeto de lei. Exemplo foi a não aprovação do projeto propondo o Dia da Visibilidade Lésbica no calendário oficial da cidade do Rio de Janeiro. Apresentado pela vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), o texto foi rejeitado na Câmara Municipal por 19 votos a 17.

Mas, mesmo em meio a este cenário, as discussões crescem e a visibilidade é parte do cotidiano das ruas, dos ambientes de trabalho e também da mídia.

Não aquela que chega impositiva às casas da maioria de brasileiros e brasileiras pela TV ou nas rádios autorizadas pelo poder público, nem aquela favorecida por algoritmos na internet.

Mas, sem dúvida, das mídias que se multiplicam, apesar de tudo, pelo esforço de milhares de mulheres que lutam para dar voz e corpo à própria existência. E que cada vez mais escancaram os espaços de confinamento e opressão.

O dia de hoje é sobre tudo isso. É é como fruto do resultado do trabalho de décadas de mulheres lésbicas em movimento que este texto pode, enfim, existir. 

*Camila Nóbrega é jornalista e doutoranda em Ciência Política. Colaborou Iara Moura. Ambas integram o Intervozes. 

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