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Na ditadura, jornalismo feminista lutou contra a repressão

No aniversário da ditadura civil-militar no Brasil, vale relembrar a luta das mulheres contra o regime autoritário através do jornalismo

Foto: Memórias da Ditadura
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Por Mônica Mourão

Na imprensa, a contestação mais firme e constante contra a ditadura civil-militar brasileira foi desenvolvida pela chamada imprensa alternativa. Jornais tabloides e revistas, alguns com caráter mais “jornalístico”, outros mais “políticos” e os “de humor” (como se fosse possível separar os três tipos), arriscavam-se em empreendimentos quase sempre efêmeros, em geral sufocados pela perseguição (censura, ataques a bancas de jornais, prisões e ameaças a jornalistas, estrangulamento econômico) e também desintegrados pelas constantes disputas internas.

Entre os alternativos, o professor da USP e também jornalista Bernardo Kucinscki categoriza uma parte deles como “quase partidos”. Segundo Kucinski, o fechamento de espaços políticos institucionais levava os diferentes grupos e tendências a ocupar as redações dos jornais, lugares privilegiados de atuação política que, em tempos democráticos, aconteceria em partidos e sindicatos. Assim, política e imprensa alternativa estavam fortemente imbricadas.

 

Na luta contra a ditadura, as mulheres atuaram em todas as frentes. Estiveram na luta armada urbana e na guerrilha rural, nos jornais ilegais de partidos e na imprensa feita no exílio.

Porém, de acordo com a cientista política Flávia Biroli, “a violência da repressão não foi neutra em termos de gênero. Estão hoje documentadas práticas de tortura às mulheres que incluíram a violação e formas específicas de humilhação e terror, assim como a perseguição a homossexuais e o combate ao ‘homossexualismo’. Mas é possível argumentar que só mais tarde se teria a compreensão de que misoginia e sexismo foram fundamentais no processo político e na dinâmica de dominação do período. Naquele momento, muitas das mulheres se engajaram na luta política como partícipes de uma luta mais ‘geral’ anticapitalista e contra injustiças sociais” (Biroli, 2018, p. 177-178).

Esse foi o caso do início do jornal “Brasil Mulher”, criado por Therezinha Zerbini. Segundo ela conta para o projeto Resistir é Preciso, do Instituto Vladimir Herzog, em 1975, houve “a rara oportunidade de começar um trabalho político firme e consistente. Foi o Ano Internacional da Mulher organizado pela ONU. Eles tinham como bandeiras: igualdade, desenvolvimento e paz. E nós levantamos a bandeira da anistia como uma bandeira de paz e de direitos humanos”.

O jornal se dividiu em disputas internas: para Therezinha Zerbini, não era um periódico feminista. “Duas lutas não dá, luta interna não dá. Então nós fizemos o [jornal] Maria Quitéria”.

Ela também criou o Movimento Feminino pela Anistia, fundamental na luta pela redemocratização do país.

Mas o “Brasil Mulher” continuou circulando até 1980. Segundo a historiadora Natalia de Souza Bastos, o grupo responsável pelo jornal se ampliou já a partir do número um (lembrando que houve um número zero), com a entrada de mulheres ligadas a várias tendências de esquerda e aos partidos clandestinos.

Em 1977, parte do grupo desligou-se da Sociedade Brasil Mulher, responsável pelo jornal, e ele entrou numa fase com atuação privilegiada de mulheres ligadas a grupos organizados. A data marca a saída das fundadoras do periódico e da jornalista Joana Lopes, a primeira editora e posteriormente parte da equipe de redação.

Amelinha Teles, ao contar sobre o periódico na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, traz à tona o incômodo que questões de gênero causavam ao moralismo conservador da ditadura.

Segundo ela, “a Revista Realidade de 1967 foi totalmente apreendida porque falava de mulheres. Inclusive a desculpa que se deu é que era a foto de um parto, uma mulher tendo um bebê e na foto a mulher estava de costas e o bebê saía lá na frente. Isso foi considerado uma cena imprópria para o público brasileiro. […] E falava da mãe solteira. […] Mais tarde, depois que já tem o Brasil Mulher, vimos o jornal Movimento também sendo censurado e até sendo impedido de ir para a gráfica porque a Polícia Federal cortou todo o jornal e impediu de ir para a gráfica. Portanto, […] na Imprensa Alternativa dos homens o assunto estava proibido, o assunto ‘mulher’. Então nós vamos trazer a Imprensa Feminista em 1975 nesse contexto histórico” (Relatório CEV Rubens Paiva, 2015, p. 19-20).

Segundo a jornalista Maria Moraes, “muitas matérias censuradas no Movimento saíram no ‘Nós Mulheres’”. Essa era uma característica comum a toda a imprensa alternativa: jornalistas que trabalhavam em outros veículos, mesmo da chamada “grande imprensa”, buscavam publicar matérias censuradas em outros espaços. O mais importante era furar o cerco da censura.

Diferentemente do “Brasil Mulher”, o jornal “Nós Mulheres” já foi criado a partir de um grupo mais amplo, com grande envolvimento de mulheres que tinham tido um contato mais próximo com as pautas feministas no exílio, organizadas em torno da revista Debate ou do Círculo de Mulheres de Paris. A questão de classe foi fundamental para o “Nós Mulheres”. Feito por mulheres de classe média, ele se voltava para as de baixa renda, o que gerou conflitos em torno da abordagem que deveria ser adotada pelo veículo. Em alguma medida, essa era uma crise compartilhada entre as militantes feministas que participavam de organizações políticas.

“Pela primeira vez senti que não estava lutando pelo camponês, pelo operário, pela revolução. Estava lutando por uma coisa que concernia a mim, a meu dia a dia, à história da minha vida. Às vezes, me sentia culpada de estar lutando por mim, parecia egoísmo, e isso me assustava”, contou a militante Regina Bruno à historiadora Denise Rollemberg, em 1995. Para Natalia de Souza Bastos, “a dupla militância era uma questão polêmica, mas a autonomia era consensual entre as militantes dos jornais” (Bastos, 2007, p. 93).

As mulheres defendiam independência em relação às organizações das quais faziam parte, porém é impossível separar a influência já internalizada da linha política dessas organizações na atuação delas na imprensa feminista. Buscavam entrelaçar a luta pelo socialismo à luta feminista. Questões como amor, sexo, dor, frustrações e desejos individuais apareciam nas páginas dessa imprensa, assim como aborto, contracepção, dupla jornada e direitos das mulheres. Porém não ficava de fora a campanha pela anistia e pelo reestabelecimento da democracia. Em suas organizações políticas, elas incluíram a pauta da dupla opressão feminina, criando grupos de discussão somente de mulheres.

O início dos anos 1980 viu surgirem outros importantes jornais feministas, como o Mulherio, formado por mulheres de diferentes grupos políticos e que dava destaque a questões relacionadas a comportamento e sexualidade, e o Chanacomchana, do Movimento Lésbico-Feminista, que se assemelhava a um fanzine e circulou durante toda a década de 1980. Inicialmente, elas faziam parte do jornal Lampião da Esquina, que abordava a temática LGBT, principalmente focado em homens homossexuais.

Além da imprensa voltada especialmente para mulheres, importante lembrar, como já dito, que elas estavam em todos os lugares. Marta Alencar fazia, na gíria jornalística, a cozinha d’O Pasquim. Era preciso falar palavrão, fumar charuto e quase cuspir no chão para ser respeitada naquele ambiente masculino, ela conta no documentário “O Pasquim, a subversão do humor” (2004).

Ruth Tegon, do Correio Sindical, organizou a resistência no exílio, que passava por outras atividades além da produção de jornais, como a realização de eventos festivos voltados para mobilizar a opinião pública no exterior em torno da campanha pela anistia e arrecadar recursos. Ana Arruda Callado e Tetê Moraes organizaram o jornal O Sol (aquele, nas bancas de revista da música do Caetano Veloso).

Olívia Rangel Joffily, diretamente da Albânia, junto a seu marido, Bernardo Joffily, acompanhava as notícias da rádio Tirana, fundamental na estratégia de comunicação clandestina do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ao qual ambos faziam parte.

A luta pela democracia e pelo fim das opressões de gênero passou por essas e outras mulheres. Saímos da sombra, gritamos juntas por liberdade e ocupamos os espaços públicos e a esfera política, a despeito da ainda atual misoginia.

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