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Multa ao Google escancara elefante na sala: a concentração na internet

Movimentação da União Europeia para garantir competição, mas também direitos dos usuários, ressalta a ausência de políticas semelhantes no Brasil

"Google promove Google Shopping colocando-o no topo. Google mostra os serviços de compra concorrentes como os últimos resultados, onde os consumidores não os veem": alguns dos argumentos da Comissão Europeia
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Por Marina Pita*

A Comissão Europeia multou o Google em 2,42 bilhões de euros por abusar de seu poder de dominância como ferramenta de busca na internet e fragilizar a concorrência por meio do favorecimento de seu serviço de comparação de preços, o Google Shopping. A multa, por violação da legislação antitruste da União Europeia, é a maior já aplicada – por conta da gravidade e duração da violação, explicou a Comissão Europeia em documento oficial.

Analistas apontam que a decisão, incluindo o vulto da multa, é um marco para a regulação da internet da perspectiva do direito do consumidor, e um forte indicativo de que novas medidas antitruste podem estar a caminho, para além do mercado de buscas e dos muros coloridos do Google.

A própria Comissão Europeia já aponta para conclusão preliminar de que o Google abusa de sua posição dominante em dois outros casos, ainda sob investigação: por meio do sistema operacional Android, a Google teria inibido a liberdade de escolha e a inovação, ao adotar uma estratégia para dispositivos móveis que protege sua posição dominante no mercado de buscas online. 

E por meio do AdSenses, plataforma de anúncios para terceiros do Google, a companhia teria reduzido as opções de escolha de sistemas de anúncio a partir de pesquisas por terceiros. A comissão ainda afirmou, em comunicado, que está sob análise o tratamento dado aos resultados em demais serviços de busca especializada oferecidos pelo Google.

Mas a atenção despendida por organismos europeus para proteção da concorrência em ações de uso de poder dominante para autofavorecimento não se restringe ao comércio online. Há também posicionamentos acerca da coleta de dados pessoais. A agência alemã antitruste investiga se a maior rede social do mundo, o Facebook, abusa de sua dominância forçando seus usuários a aceitar termos injustos acerca do uso de dados pessoais.

Em abril, Andreas Mundt, presidente da agência alemã antitruste, afirmou estar “fortemente convencido de que a privacidade é também uma questão de concorrência”, conforme registrado com entusiasmo pela revista Wired.

A declaração de Mundt chama atenção porque indica que uma agência de fiscalização e regulação econômica pode ir além de questões de concorrência entre negócios e de barreira de entrada para novos competidores: pode intervir na disputa entre uma plataforma e o direito de seus milhões de usuários, vistos assim não apenas como consumidores. Esta seria uma importante mudança de filosofia em tempos de neoliberalismo, conforme salienta a Wired. Sim, a concentração de mercado pode ser analisada sob a perspectiva do direito à privacidade.

As ações antitruste promovidas pela UE têm sido classificadas como práticas protecionistas pelos Estados Unidos, com declarações de indignação de Barack Obama, quando ainda presidente do país de origem das gigantes digitais. Ele chegou a afirmar: “Nós possuímos a internet. Nossas companhias a criaram, expandiram e aperfeiçoaram de maneiras em que não há como competir”.

Os grupos americanos de tecnologia, por sua vez, pressionaram Obama para responder ao protecionismo chinês nessa área. No fim de 2015, 19 associações ligadas à área tecnológica produziram uma carta ao presidente, por motivo de sua visita ao país, em que demonstravam preocupações. As entidades pediam a conquista de um acordo para que os países não usassem o argumento de segurança nacional para estabelecer medidas protecionistas.

A proposta ainda era uma reação ao desenvolvimento e aplicação de legislações em diversos países do mundo como resposta aos escândalos de vigilância massiva por meios digitais pelos Estados Unidos, que se deram a partir do vazamento de informações internas da Agência Nacional de Vigilância (NSA, em inglês) por Edward Snowden.

No entanto, enquanto EUA, Europa e China, os polos econômicos do mundo, demonstram que estão atentos à sua parte neste latifúndio, o Brasil (e arrisca-se dizer, boa parte da América Latina) segue à margem. Maximiliano Martinhão, secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), chegou a dizer, em evento na Confederação Nacional da Indústria (CNI), em setembro do ano passado, que o país estaria definindo uma estratégia para ampliar os investimentos no setor por meio de um “ecossistema” com a participação dos setores público e privado.

No mesmo evento, o consultor em telecomunicações e professor da Escola de Negócios da Universidade de Colúmbia (EUA) Raul Katz, afirmou que o consumo e o desenvolvimento da internet estão acelerados na América Latina, mas há atrasos no setor industrial em relação à incorporação das tecnologias nos processos produtivos.

Não à toa, organizações como o Intervozes vêm apontando que o uso de tecnologias e da internet no País, em consonância com as diretrizes políticas vigentes até agora, apenas ampliaram o consumo e não respondem à necessidade de inclusão digital sob a perspectiva da cidadania. Ou seja, não significaram empoderamento digital da população, do mercado produtivo ou do País.

Na ocasião, como exemplo de política brasileira para o universo digital, membros do MCTIC chegaram a citar o investimento de 103 milhões de reais no programa Start-Up Brasil, feito para “empresas nascentes de base tecnológica”, segundo o site do próprio programa. Na falta de um projeto robusto, sobrou tal exemplo, que demonstra o nível em que se encontra a política nacional para o desenvolvimento econômico no setor de tecnologia da informação e comunicação: risível.

Concentração de mercado, regulação e direitos

Em uma economia global em que tudo é atravessado pelas tecnologias da informação e comunicação, também direitos passam por essas ferramentas, incluindo os direitos à privacidade, à cultura, à informação e à liberdade de expressão. Nesse sentido, o conceito apresentado por Andreas Mundt, de que é preciso observar a concentração, também da perspectiva do direito à privacidade, pode e deve se estender e levar à análise da concentração do ponto de vista do impacto em outros direitos.

Quando os algoritmos de um punhado de empresas são responsáveis por indicar quais conteúdos serão mais visualizados, recomendados, lidos e assistidos, é o caso de analisar o impacto da concentração de forma estruturada e contínua, como fez a Comissão Europeia no caso do Google Shopping – foram coletados e analisados 5,2 terabytes de resultados de buscas, por exemplo. A partir de análises bem embasadas, pode-se exigir medidas protetivas para a garantia dos direitos, incluindo a participação do Brasil e da América Latina no mercado global.

Em maio, a reportagem “O recurso mais valioso do mundo não é mais o petróleo, mas sim, dados”, que figurou na capa da revista The Economist, afirma que autoridades antitruste devem se mover da era industrial para o século XXI. Quando analisam uma fusão entre empresas, por exemplo, as autoridades têm tradicionalmente usado o tamanho das companhias para determinar quando intervir. Mas agora, defendeu a publicação, “precisam levar em conta a extensão dos ativos em termos de coleta de dados para acessar o impacto de acordos desse tipo”.

Assim, para além das ações antitruste que devem ser revistas para o século XXI, as políticas de regulação econômica de forma mais ampla precisam preservar e garantir direitos humanos fundamentais que têm forte impacto no processo democrático, como a liberdade de expressão e acesso à informação.

Não à toa a Constituição brasileira impede o monopólio e o oligopólio nos meios de comunicação. Esse debate precisa ser feito, inclusive, no universo digital, protegido até agora por uma aura de autorregulação, pela variedade de ofertas e pela inovação, que precisa ser desmanchada a partir da análise de fatos concretos.

Recentemente, a Agência Nacional do Audiovisual (Ancine) moveu-se nesse sentido ainda controverso (pelo menos ainda no Brasil) e realizou consulta pública sobre as novas necessidades de regulação do setor em vistas do crescimento do mercado de oferta de “vídeo sob demanda” (VOD, em inglês), diante da ampliação de participação de mercado de aplicativos como o Netflix, iTunes, Net Now, Vivo Play, Claro Vídeo e Globo Play, entre outros. Porém, com a saída de Manoel Rangel, que vinha dirigindo esse processo como diretor-presidente da Ancine, não se sabe o que será feito com os resultados da consulta pública.

O Brasil, apenas em 2011, conseguiu aplicar uma regulação para fortalecer a indústria nacional de audiovisual (e dar músculo tanto à economia quanto à cultura nacional, suportando o direito à cultura, à liberdade de expressão e ao acesso à informação) por meio da aprovação da Lei de Serviço de Acesso Condicionado (Seac), nº 12.485. Mas com as rápidas mudanças no modelo de consumo de entretenimento, tal conquista para a economia e garantia de direitos pode desaparecer diante da inoperância do Estado brasileiro.

“Hoje temos um paradoxo, que muitos já devem ter se dado conta: se a internet provê espaço ilimitado para a informação e sua variedade, por que temos de discutir pluralismo de mídia? Interessante é que ao mesmo tempo que a internet provê essa capacidade ilimitada, o que vemos acontecer, como uma tendência global, é a concentração da propriedade dos meios de comunicação, cada vez mais visível em, basicamente, todos os países.

E isso acontece em nível global, com novos gatekeepers basicamente alcançando patamares de monopólio. Hoje, 86% das verbas de publicidade online no primeiro trimestre deste ano foram apenas para Google e Facebook, considerando o território da União Europeia”, afirmou Olaf Steenfadt, coordenador do projeto Media Ownership Monitor (Monitoramento da Propriedade da Mídia, na livre tradução para o português), da ONG Repórteres Sem Fronteiras, que está hoje no Rio de Janeiro para lançar o projeto em parceria com o Intervozes.

No lançamento do projeto em São Paulo, na semana passada, Steenfadt frisou: o jornalismo independente precisa de um ambiente econômico saudável e funcional para os meios de comunicação, o que começa com dados e transparência para esses mercados.

Mas, vale frisar, apesar dos esforços de organizações da sociedade civil e da academia de coletar dados e analisar o mercado de comunicação e da tecnologia da informação e comunicação (TIC), é papel do Estado e das agências públicas analisar os mercados e regular a economia para garantia de direitos, em diálogo – aí sim – com a sociedade civil e o empresariado.

Em um cenário como o brasileiro, em que a comunicação sempre foi tratada como um balcão de negócios, o desafio é imenso neste sentido. Com a expectativa de que ocorram eleições diretas em breve no país, é urgente pensar em um projeto de desenvolvimento considerando concentração, desenvolvimento e garantia de direitos em tempos de big data (grande conjunto de dados armazenados), convergência dos meios e importância das tecnologias da informação e comunicação. Esta é uma tarefa para qualquer um dos espectros políticos hoje, mas especialmente para a esquerda, tradicionalmente defensora dos direitos fundamentais.

*Marina Pita é jornalista e integra a Coordenação Executiva do Coletivo Intervozes

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