Intervozes
Mídia invisibiliza mobilização pelo fim da jornada de trabalho 6×1
Enquanto quem trabalha não fala de outra coisa, jornais fazem vista grossa para redução de carga horária
Na última semana, assistimos a um intenso movimento nas redes sociais em defesa do fim da jornada de trabalho 6×1, com forte mobilização de trabalhadores, trabalhadoras e entidades comprometidas com a causa. A tônica é pôr fim ao regime comum a trabalhadores do comércio, por exemplo, em que se trabalha seis dias por semana para apenas uma folga. No entanto, enquanto essas vozes ecoavam na internet, grande parte da mídia tradicional permaneceu em silêncio, ignorando um debate que tem impacto direto na qualidade de vida dos trabalhadores brasileiros.
Os principais jornais impressos do país – O Globo, Estadão e Folha de S. Paulo – não deram a devida atenção ao tema no início desta semana, mesmo com o crescimento das manifestações nas redes. O Globo, em um gesto tímido, fez uma breve menção em sua versão impressa, direcionando os leitores para uma matéria online por meio de QR code. Não é preciso muito esforço para perceber que houve desinteresse da mídia impressa em dar visibilidade ao debate.
Na televisão, a situação foi ainda mais crítica. Até esta terça 12, Nenhuma reportagem relevante foi exibida sobre a PEC que propõe a mudança na jornada de trabalho. Ocorreu um silêncio quase absoluto nas emissoras, como se a mobilização popular não fosse digna de cobertura. Quando houve alguma abordagem, ela ocorreu nos portais online de grandes grupos midiáticos, como Globo, SBT, Record e R7.
Os portais online demonstraram um pouco mais de abertura ao debate. Sites como Metrópoles e UOL trataram do tema, explorando os principais pontos da Proposta de Emenda à Constituição apresentada pela deputada federal Erika Hilton (Psol – SP). Mas mesmo nestes espaços, quando o contraditório foi ouvido, a narrativa se manteve previsível: argumentos repetitivos, sem aprofundamentos ou contextualizações que demonstrem os benefícios socioeconômicos obtidos em países como Alemanha, Itália e França, três das maiores economias globais, que estão entre as nações da OCDE com menor carga horária de trabalho. Dados e pesquisas científicas que poderiam enriquecer o debate foram negligenciados. A ênfase no jornalismo declaratório também chamou atenção.
Ao ignorar ou limitar o espaço para temas cruciais como este, a mídia tradicional brasileira mais uma vez deixa de cumprir seu papel social. O aprofundamento do debate sobre a jornada de trabalho 6×1 poderia trazer benefícios substanciais para milhões de trabalhadores e para a economia, mas essa possibilidade é abafada em favor de uma agenda que beneficia os grandes grupos econômicos. Esse silêncio midiático revela uma escolha explícita: perpetuar privilégios e sistemas de exploração e opressão em detrimento do bem-estar coletivo.
Uma mídia de patrões
Em outros momentos chave pra vida de quem vende sua força de trabalho, não foi diferente. É o caso por exemplo, do debate em torno da reforma da previdência. Na época, jornais impressos e telejornais privilegiaram fontes favoráveis a Bolsonaro. Mulheres – as mais impactadas pelo projeto- foram a minoria entre especialistas ouvidos.
O estudo Vozes Silenciadas Reforma da Previdência e Mídia analisou as edições impressas dos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo publicadas no período de primeiro de janeiro a 30 de junho de 2019. Nestas, 64% dos(as) especialistas ouvidos posicionaram-se favoravelmente à reforma, enquanto 8,5% foram parcialmente contrários (mesmo índice daqueles cujo posicionamento não foi possível identificar) e 19% manifestaram-se contrariamente à proposta.
Longe de ser fato isolado, a escolha por silenciar a mobilização legítima por uma jornada reduzida encontra explicação no fato de a mídia brasileira de maior audiência ser controlada, dirigida e editada, em sua maior parte, por uma elite econômica formada por homens brancos, patrões, aos quais não interessa saúde, qualidade de vida ou direitos dos trabalhadores. A pesquisa Quem Controla a Mídia, feita pelo Intervozes com apoio da Repórteres Sem Fronteiras, demonstra que os 50 veículos de maior audiência no país pertencem a 26 grupos ou empresas de comunicação. Desses, todos possuem mais de um tipo de veículo de mídia e 16 possuem também outros negócios no setor, como produção cinematográfica, edição de livros, agência de publicidade, programação de TV a cabo, denotando a concentração. Além disso, 21 dos grupos ou seus acionistas possuem atividades em outros setores econômicos estratégicos, como educação, financeiro, imobiliário, agropecuário, energia, transportes, infraestrutura e saúde. Há ainda proprietários que são políticos ou lideranças religiosas. Os interesses dos grupos impedem a existência de uma pluralidade de vozes, o embate de opiniões e a coexistência de valores e visões de mundo diferentes.
Furando a bolha
Por outro lado, enquanto a mídia tradicional faz vista grossa, mídias alternativas e influenciadores digitais têm dado destaque significativo ao debate sobre o fim da jornada de trabalho 6×1. Em blogs, podcasts e canais de vídeo, o tema tem sido analisado de forma mais aprofundada, incluindo a contextualização de experiências internacionais, a divulgação de dados e os relatos de trabalhadores brasileiros que vivenciam hoje uma rotina exaustiva. Influenciadores, muitos deles com milhares de seguidores, vêm compartilhando a proposta, explicando seus efeitos e ampliando a mobilização, especialmente entre os mais jovens. Esses espaços têm se tornado importantes para romper o silêncio midiático e trazer visibilidade a uma pauta de grande relevância social.
A iniciativa faz parte do movimento “Vida além do trabalho”, que denuncia o caráter abusivo da jornada 6×1: tal rotina de trabalho compromete a saúde, o bem-estar e as relações pessoais dos trabalhadores. Afinal, segundo a Constituição Federal e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o expediente não pode ultrapassar oito horas diárias e 44 horas semanais, sendo possível reduzir ou compensar horários mediante acordo.
A PEC atualmente em discussão é de autoria da deputada Erika Hilton (Psol-SP), mas há também um projeto similar do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) – que segue paralisado em comissão da Câmara. A convergência dessas propostas reflete a urgência de um debate sério e responsável sobre as condições de trabalho no país, algo que a sociedade não pode mais adiar.
O movimento social pelo fim da jornada 6×1 continua e, com ele, o desafio de romper a bolha midiática, conquistando os espaços necessários para transformar a realidade de quem mais precisa. Que a mobilização siga crescendo, até que seja impossível ser ignorada.
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