Intervozes

Guerra de ideias: o que significa a criação da editoria de guerra do Extra

O jornal do Grupo Globo reacendeu um debate de visões de mundo acerca da violência carioca

Professores e alunos da rede municipal de ensino participam de ato pela paz no Museu de Arte do Rio, na zona portuária da capital fluminense, em 17 de agosto
Apoie Siga-nos no

Por Mônica Mourão*

“Isso não é normal”. A conclusão publicada na quarta-feira 16 pelo jornal Extra, do Grupo Globo, sobre a situação de violência no Rio de Janeiro, é o mais próximo de um consenso entre quem vive na cidade. No entanto, talvez o consenso se encerre por aí. A decorrência do reconhecimento da anormalidade foi a criação de uma editoria de guerra pelo jornal, que tem sido alvo de opiniões intensas e diversas desde então. Afinal, qual o impacto de trocar o selo “Casos de Polícia” por “Guerra do Rio”?

Segundo o jornalista Octavio Guedes, diretor de redação do Extra, “pra gente resolver um problema, a gente tem que chamar o problema pelo termo correto. […] Uma coisa é guerra, outra coisa é polícia. […] Quando a gente chama pelo termo correto, isso não é polícia, isso não é uma ocorrência policial, isso é guerra, então nós, de uma certa maneira, ajudamos a resolver o problema”.

Capa editoria de guerra Desde a última quarta-feira (16), o jornal Extra passou a considerar como parte da editoria de guerra “tudo o que foge ao padrão da normalidade civilizatória”Em vídeo produzido pelo jornal sobre o tema, com direito a trilha sonora que dá um tom melodramático muitas vezes acionado pelo jornalismo, Guedes afirma também que a decisão de usar essa nomenclatura é entristecedora: “Criar uma editoria de guerra depois de 30 anos convivendo com jornais no Rio de Janeiro e dando enfoque à polícia é uma sensação de derrota. […] Aliás, o Extra deve ser o único jornal no planeta que tem uma editoria de guerra num país que não reconhece a guerra”.

Quem também defende a ideia de que vivemos uma guerra é a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que parabenizou o Extra em sua conta no Twitter. Já as maiores vítimas dos tiroteios na cidade manifestaram-se contra a editoria: “Nunca iremos aceitar que achem que vivemos uma situação de guerra. Seja baseada em números ou dados de situações ao redor do mundo. Tudo que o Estado e que a polícia necessita é que a gente e a imprensa endosse e aplauda essa ideia. Na Guerra aceitam-se ações truculentas, aceita-se passar do ponto, aceitam-se baixas, aceita-se ter um inimigo, um povo inimigo, aceita-se qualquer coisa!”, dizia um texto publicado na quinta-feira 18 na página Maré Vive, mantida por moradores do Complexo da Maré.

Para os moradores do Jacarezinho, se existe uma guerra, é a guerra aos pobres. A favela do Jacarezinho tem vivido dias de intenso tiroteio nessa semana, com operações policiais em busca do assassino do policial do Core Bruno Guimarães Buhler, na sexta-feira 11.

O manifesto lançado por eles através da Agência de Notícias das Favelas articula várias questões fundamentais para este debate: “A sociedade, ao aplaudir, e a mídia, ao reverenciar atuações violentas, truculentas e covardes, se passando por guerreiros, assim como a violência produzida pelo próprio Estado, legitima e estimula toda essa barbárie violenta. Violência gera violência. A população preta, pobre e favelada tem sido vítima cotidiana desse que mais parece um plano de extermínio do que de combate às drogas. A guerra às drogas é, na verdade, uma guerra aos pobres”.

Há que se destacar que o Extra reconhece os perigos para a população advindos da declaração de que vivemos uma guerra. “Temos consciência de que o discurso de guerra, quando desvirtuado, serve para encobrir a truculência da polícia que atira primeiro e pergunta depois. Mas defendemos a guerra baseada na inteligência, no combate à corrupção policial, e que tenha como alvo não a população civil, mas o poder econômico das máfias e de todas as suas articulações”, diz trecho do editorial de quarta-feira.

A defesa de determinado tipo de guerra (e não outro) e os perigos de desvirtuamento do discurso não se perdem quando “Guerra do Rio” se transforma em selo, editoria ou hashtag? Existe então um tipo de guerra que é defensável? E o que significa reconhecer uma guerra? O jornal não se aprofunda em quais seriam as consequências dessa sua ação, inclusive para a própria rotina jornalística. Os repórteres de polícia agora são correspondentes de guerra? Os procedimentos de segurança – o uso de coletes à prova de balas e capacetes em regiões de tiroteio já é padrão – deve mudar?

As Convenções de Genebra, que definem normas internacionais para casos de guerra, preveem a proteção de jornalistas assim como os demais civis. Caso sejam correspondentes de guerra, esses jornalistas têm direitos especiais, como de ser tratados como prisioneiros de guerra. No Decreto nº 849, de junho de 1993, a Presidência da República do Brasil promulgou os protocolos adicionais às Convenções de Genebra.

Segundo esse decreto, “quando as pessoas que têm o direito à proteção de que gozam os prisioneiros de guerra tenham caído em poder de uma Parte adversa em condições incomuns de combate e que impeçam sua evacuação […] serão liberadas, devendo adotar-se todas as precauções possíveis para garantir sua segurança”. É isso que o Extra defende para seus repórteres da editoria de guerra? O jornal está disposto a defender também outras mudanças previstas em caso de oficializado um estado de guerra?

Além disso, o Decreto nº 849 garante que “nenhuma pessoa poderá ser objeto de ataque” quando seja reconhecido que “está fora de combate”. Mas quem está em combate na “Guerra do Rio”?

Que guerra é essa?

Se existe uma guerra, de que lado estão as autoridades? Quem é o inimigo? Em pesquisa feita pelo sociólogo Antonio Rangel Bandeira, ouvido na CPI das Armas, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 2011, ele revela de onde vêm as armas usadas por grupos armados nas favelas.

“Nós conseguimos rastrear cerca de 20 mil armas apreendidas na ilegalidade no RJ. Com informações dos fabricantes e com a ajuda da Polícia Federal e do Exército, constatamos que 68% tinham sido vendidas pelos fabricantes, antes de serem desviadas, para oito lojas no Rio. E 18% tinham sido vendidas para o Estado, ou seja, Forças Armadas (28%) e o resto (72%) para a polícia. Desta porcentagem, 59% para a Polícia Militar. A nossa pesquisa mostra que a banda podre da PM aparece disparada como a principal fornecedora de armas e munições para o narcotráfico”, mapeou o sociólogo, segundo matéria da Carta Capital de 30 de março de 2011.

Além de saber que os diferentes lados dessa “guerra” estão misturados um com o outro, um dado importante diz respeito às suas vítimas letais. Dados do Instituto de Segurança Pública amplamente divulgados pela imprensa em março deste ano apontam que apenas nos dois primeiros meses de 2017 foram mortas 182 pessoas em operações policiais. No mesmo período, apenas sete eram policiais em serviço. Caso se incluam os que estavam de folga ou são reformados, o número sobe para 46.

“A gente não está querendo dizer que a vida do policial não é importante, claro que é. Mas as estatísticas comprovam na prática que a morte de policiais é ínfima se comparada às mortes de pessoas pela polícia”, analisou Pedro Barreto, jornalista e coordenador do curso “Mídia, violência e direitos humanos” na UFRJ.

“O discurso é apresentando como se o traficante fosse o inimigo, mas como se faz essa distinção? E você não vai no cerne da questão porque está a todo momento chancelando um sujeito que por questões sociais é sempre visto como sujeito criminoso. É como se o crime estivesse inserido na alma dele, e não no ato criminoso”, defendeu Barreto. O perfil dos suspeitos de crimes, como apontado por ele, aparece em números: do total de jovens de 15 a 29 anos assassinados no Brasil (300 mil por ano), 77% são pretos e pardos.

Segundo a jornalista e comunicadora popular Gizele Martins, moradora da favela da Maré, “sofremos um extermínio historicamente e o discurso da guerra às drogas só legitima essa matança do povo negro e pobre que mora nas favelas do Rio. Nós jornalistas somos produtores de informação, influenciamos a sociedade e as estruturas do poder, não podemos ter esse retrocesso num momento em que temos um avanço no número de comunicadores comunitários favelados falando por si e disputando narrativas que não são também nossas vidas”.

Já vimos esse filme antes

Em 2008, a presença estatal nas favelas através de seu braço armado ganhou nova roupagem: as Unidades de Polícia Pacificadora. O discurso, na época, já acionava o vocabulário e as imagens de guerra, como “retomada de território” e o simbolismo da bandeira do Brasil hasteada nos lugares “reconquistados” pelo Estado.

Mas essas estratégias discursivas são ainda anteriores às UPPs. Em seu livro intitulado Narrativas do medo, Letícia Matheus desvenda como o jornal O Globo articulou, em 2003, as coberturas de dois casos de violência urbana acontecidas naquele ano: a morte da estudante Gabriela do Prado Ribeiro durante um tiroteio em uma estação do metrô e, a segunda, sobre o “ataque” a um campus universitário do qual saiu ferida a estudante Luciana de Novaes. Segundo a autora, tratam-se de dois casos de ruptura da ordem pública. No imaginário carioca, o metrô é um lugar seguro. No imaginário brasileiro, a universidade é um lugar de distinção social.

Gabriela Estudante morta em metrô no Rio, em 2003, Gabriela faz o símbolo da paz. Jornal já usava termos belicistas

Foi preciso que a morte chegasse a esses espaços para que ela ganhasse um selo especial do jornal O Globo: uma arte com fotografia da estudante Gabriela fazendo um gesto identificado como símbolo da paz e os dizeres: “A Guerra do Rio”. As mesmas palavras utilizadas agora, 14 anos depois, pelo Extra.

Selo "A Guerra do Rio" Jornal O Globo cria selo “A Guerra do Rio”, em 2003. Mais de uma década depois, a narrativa da mídia reforça que vivemos em guerra

O jornalismo que você vê

O documentário “A guerra que você não vê” (John Pilger, 2010) ouve jornalistas e especialistas para mostrar como diferentes guerras da recente história ocidental foram contadas pela mídia com base em informações de fontes autorizadas sem a devida checagem. Quem não se lembra da invasão dos Estados Unidos ao Iraque, no início dos anos 2000, sob a alegação de que aquele país estaria produzindo armas de destruição em massa cuja existência jamais foi comprovada?

O mote para a criação de editoria de guerra do Extra é um documento sigiloso do Instituto de Segurança Pública que teria mapeado 843 áreas do Rio de Janeiro controladas por grupos armados. Segundo o próprio jornal, o documento só poderá ser tornado público, no mínimo, em 2021.

Qual o interesse da polícia em fornecer essa informação privilegiada ao Extra? Por que tantos anos até que o documento venha a público? Se não pode ser publicado na íntegra, por que parte das informações foi divulgada? O documento é conclusivo ao ponto de provocar a mudança editorial do jornal? São perguntas infelizmente sem resposta.

Mídia legitima políticas públicas

Em sua pesquisa de doutorado, Pedro Barreto concluiu que “o discurso do jornal O Globo justifica a prática de extermínio da juventude negra. E corrobora para o investimento de políticas numa lógica punitiva”. Em julho 2015, Dilma Rousseff sancionou a lei que tornou crime hediondo o assassinato de policiais a partir de uma série de reportagens que o Globo fez a partir da morte de policiais nas UPPs do Rio, principalmente de Uanderson, em setembro de 2014, no complexo do Alemão. Ele foi o primeiro comandante de UPP morto em ação. Depois se verificou que ele foi morto por um colega de farda numa troca de tiros, com a prerrogativa de estar agindo em legítima defesa. Já para o dito traficante, mesmo que agindo em legítima defesa, seria considerado que foi cometido crime hediondo.

A figura do “traficante” como um perigoso homem que faz parte de um bando armado nem sempre corresponde aos números. Em artigo na coluna “Agora é que são elas”, na Folha de S. Paulo, a jornalista Roberta Lerer afirma que entre 2000 e 2014, após alteração na Lei de Drogas que endureceu as penas mínimas para tráfico, aumentou em 503% o número de mulheres presas.

Hoje, são mais de 40 mil encarceradas, 63% por crimes relacionados a drogas, e a maioria sem antecedentes criminais. São mulheres chefes de família que deixam de sustentar suas casas e criar seus filhos por conta da “guerra às drogas” – que, apesar da quantidade de prisões que causa, segue sem luz de paz no fim do túnel.

Não é de hoje que coberturas jornalísticas legitimam políticas públicas. Em chamada de capa de 27 de março de 2003, sobre a morte da estudante Gabriela, O Globo publicou: “Somos mais uma família derrotada nessa guerra, disse Fernando Ricardo no adeus à sobrinha Gabriela, cremada ontem depois de morta em tiroteio no metrô. A polícia prendeu um acusado. O PT resiste a aprovar projeto que impõe mais rigor a presos”. Durante a década de 1990, são conhecidas as coberturas, pela TV Globo, dos arrastões nas praias cariocas associados a um caos na segurança pública provocado pela gestão do então governador Leonel Brizola.

O Extra costuma ter um posicionamento bem mais progressista que outros veículos do Grupo Globo, tendo publicado capas emblemáticas em defesa dos direitos humanos. A atual editoria de guerra não pode ser desvinculada deste histórico. Porém seria ingenuidade acreditar que ela é apenas um grito de denúncia do jornal Extra. Ainda que escapando à intenção dos seus jornalistas, que políticas públicas a “Guerra do Rio” irá justificar?

“Ou lá na favela a vida muda ou todos os nomes vão mudar”

Assim diz um samba do compositor Paulo César Pinheiro. Por aqui, fico pensando: como o jornalismo pode colaborar para essa mudança? Que nomes podem ser usados para isso? Extermínio? Massacre? Genocídio? Que tipo de relação o jornalismo pode estabelecer com as pessoas que moram nas “843 áreas dominadas por bandos armados”? (Entre elas, também jornalistas e comunicadores populares). Pode o jornalismo comercial atuar verdadeiramente para a mudança da situação desses moradores?

Gostaria muito sinceramente de ter mais respostas do que perguntas. Mas talvez falte ao bom jornalismo, nesse momento, justamente fazer questionamentos pertinentes ao invés de dar respostas categóricas a uma situação tão complexa, delicada e cruel como a que vivemos.

*Mônica Mourão é jornalista, defensora dos direitos humanos e integrante da Coordenação Executiva do Coletivo Intervozes

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar