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Franquia de dados na banda larga fixa afronta direitos dos usuários

Kassab declara que internet ilimitada termina no próximo semestre. Impactos para informação, educação, cultura e para democracia podem ser brutais

Kassab: a proposta dele é a que as empresas querem
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Por Marcos Urupá*

O ano de 2017 já não começa bem para os usuários da internet no Brasil. Além da ameaça de desmonte do marco regulatório das telecomunicações, por meio de um projeto de lei aprovado a toque de caixa no Senado, agora a polêmica da franquia de dados na banda larga fixa volta à tona.

Em entrevista publicada na quinta-feira(12, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, deixou claro que, a partir do segundo semestre deste ano, as operadoras poderão implementar modelos de pacotes com franquia, extinguindo assim os planos ilimitados na banda larga fixa.

O presidente da Agência Nacional de Telecomunicações, Juarez Quadros, desmentiu o ministro nesta sexta-feira 13. Disse que a Anatel não pretende retirar a medida cautelar do órgão, em vigor, que impede as alterações nos planos ilimitados – enquanto não toma uma decisão definitiva sobre o caso. Porém, na entrevista, Kassab deixa claro o governo atuará neste sentido.

Parece mesmo que o ministro e sua equipe não ouviram os milhões de usuários da internet que, no primeiro semestre de 2016, se manifestaram fortemente contra tal mudança depois de surpreendidos pelo anúncio de algumas operadoras de que, a partir de fevereiro de 2017, haveria regras de franquia de dados para a banda larga fixa.

Além dos internautas, diversas organizações de defesa do consumidor e entidades que lutam pela liberdade de expressão na internet – entre elas o Intervozes – promoveram uma petição online pedindo que tal prática comercial não fosse implementada.

A medida afeta de maneira substancial a forma como entendemos e usamos a internet hoje: desde práticas simples, como mandar um email com uma foto anexada, até realizar uma formação à distância ou acompanhar uma audiência pública transmitida ao vivo pelos sites do Senado ou da Câmara dos Deputados.

O número de envios e downloads de arquivos como vídeos, imagens, textos ilustrativos e áudios passaria, por exemplo, a ser controlado pelo usuário e sua família. Empreendedores autônomos que utilizam a internet como trabalho e pequenas escolas e projetos sociais que se conectam através de redes domésticas também seriam limitados.

Estabelecimentos comerciais ou públicos, como uma biblioteca municipal, deixariam de abrir suas redes wi-fi para a conexão de visitantes. Quem não tem acesso à rede hoje por limitações econômicas seria ainda mais excluído digitalmente.

Ou seja, não apenas os impactos na educação, na participação na vida política do País e no acesso à informação e à cultura, garantidos pela Constituição Federal, seriam desastrosos. A medida afetaria decisivamente nossa relação com a internet como a conhecemos hoje.

Em um contexto em que a rede se tornou espaço e mecanismo para o exercício de direitos, aprendizado e entretenimento, impor limites à franquia de dados na internet fixa traria consequências opostas às declarações de Kassab, para quem a medida “está de acordo com os interesses do usuários” e “tenta dar prioridade à melhoria dos serviços e ao que é melhor para o consumidor”. Engana-se o ministro e sua equipe. É justamente o contrário.

A quem interessa a franquia de dados

Impor uma franquia de dados na internet fixa é um modelo de negócio conhecido, que existe em vários países, e há tempos vem sendo reivindicado pelas operadoras no Brasil. Mas não é possível ignorar as diferentes realidades – aqui e lá fora – no momento de discutir tal proposta.

Para além do fato de a internet fixa custar muito caro no Brasil e ser um privilégio de apenas metade da nossa população, outras premissas devem ser levadas em conta.

Em primeiro lugar, mais do que uma relação comercial, o acesso à rede tem se consolidado como um serviço essencial para a sociedade, conforme estabelecido no Marco Civil da Internet. Em segundo lugar, a forma como usamos a rede está intimamente ligada com o seu crescimento.

Ou seja: o alto tráfego de informações, de serviços de e-gov, de cursos à distância – usado hoje como justificativa pelas operadoras para não mais oferecer serviços ilimitados – são consequências da maneira aberta e abrangente de usar a rede mundial de computadores. Liberdade, inclusive, é uma palavra intrinsecamente associada à internet.

O argumento das empresas e, ao que parece, também defendido pelo ministro Gilberto Kassab, é de que hoje a infraestrutura disponível é usada de forma desigual. “Alguns assistem a dezenas de filmes por mês (ou por dia), em streaming. Outros, só aos fins de semana. Por esse raciocínio, não faria sentido cobrar mensalidades iguais de todos os usuários”, disse Kassab.

Ora, mas a diferença entre os usuários (e o que eles pagam pelo acesso) já não está estabelecida na contratação de pacotes de velocidades diferentes? É essa forma desigual de uso da rede que permite às empresas, por exemplo, realizarem uma melhor gestão do tráfego de dados. Agora, pretendem mudar esta lógica.

Será a restrição no volume de dados que permitirá às operadoras alterar o preço dos planos comercializados – muito provavelmente ocasionando um aumento do valor ofertado, que já é alto. O resultado não será outro que não a ampliação da desigualdade digital que já existe no País, com aqueles que podem pagar mais tendo acesso a todas as potencialidades da rede e, os mais pobres, a seus recursos “básicos”, mesmo assim limitados.

Decisões como essa, com data já marcada (no caso, o segundo semestre), não podem ser tomadas sem um amplo debate com a população. Uma discussão, inclusive, que considere, tanto pela Anatel quanto pelo governo federal, a qualidade do acesso à internet hoje no Brasil. Qualquer decisão que atropele essa discussão e ignore a posição dos usuários – como parece fazer o ministro Kassab – será tão ilegítima quanto o governo que a anuncia.

 

* Marcos Urupá é membro do Conselho Diretor do Intervozes. É pesquisador do LapCom e Doutorando em Políticas Públicas de Comunicação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.

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